Comecemos esta crônica com um pequeno
texto que há de ilustrar com engenho e arte o tema central a ser aqui tratado:
“Privatize-se
tudo, privatize-se o mar e o céu, privatize-se a água e o ar, privatize-se a
justiça e a lei, privatize-se a nuvem que passa, privatize-se o sonho,
sobretudo se for diurno e de olhos abertos. E finalmente, para florão e remate
de tanto privatizar, privatizem-se os Estados, entregue-se por uma vez a
exploração deles a empresas privadas, mediante concurso internacional. Aí se
encontra a salvação do mundo... E, já agora, privatize-se também a PUTA QUE OS
PARIU A TODOS.”
Para quem ainda não identificou o autor do pronunciamento, trata-se de
José Saramago, o nosso Nobel da Língua Portuguesa. O homem estava “puto da
vida”, e não encontrou outra forma de manifestar seu inconformismo, indignação
e ira, a não ser com um sonoro palavrão.
O mesmo fenômeno pode ser observado em vários romances do autor: o
leitor vem acompanhando um texto sisudo, circunspecto, e de repente surge o que
se convencionou chamar, na língua portuguesa, de palavrão. O impacto é enorme,
a surpresa mexe com o leitor, este não sabe se pode rir, o assunto era tão
sério!, até que se dá conta do deboche do autor, e ri.
Podemos dizer que o palavrão, nessas circunstâncias – ou bem empregado
– desmoraliza o sintoma. Palavrão é uma palavra como outra qualquer, com a
capacidade de quebrar o clima, seja em um texto, numa conferência, em sala de
aula, até mesmo numa sessão de psicanálise. Perdi a conta das vezes em que, em sala de aula, inesperadamente (este
o segredo do negócio!), proferi no mais alto brado um puta-que-pariu, para
gargalhada dos estudantes, todos muito jovens, que jamais poderiam esperar do
professor uma atitude daquelas, irreverente, audaciosa, franca, humana como
eles.
Certa feita, ao término de uma aula, uma certa aluna pediu para
conversar comigo. Com muito cuidado, me disse:
– Professor, suas aulas são maravilhosas, inesquecíveis mesmo. Mas tem
uma coisa... O senhor fala muito palavrão!
Eu não falava muito palavrão, apenas um ou dois por aula. Mas aquilo a
agredia em demasia, era incompatível com a imagem que construíra do professor.
Chegamos pois ao assunto desta crônica, o palavreado de políticos
importantes revelado em recentes escutas telefônicas. Agrada a alguns, a outros
não. Os primeiros alegam que esta é a linguagem do povo (?) e o político que
assim se manifesta aproxima-se do povo. O segundo grupo arrepia-se com tamanha
falta de compostura linguística.
Bem verdade que a intimidade de uma conversa telefônica permite certa
descontração, o que é bem diferente do registro de um texto ou de um
pronunciamento público. Mas para tudo há limite.
Ex-presidente, governadores, ministros de estado, políticos do primeiro
escalão foram pegos conversando como marginais analfabetos, exprimindo
impressionante pobreza de linguagem, quando o palavrão perde o sentido pela
frequência com que é pronunciado, como se fosse uma pontuação. Passa a doer no
ouvido.
Se isso faz com que o político se aproxime do povo, então o povo
precisa educar-se. Já os políticos...