terça-feira, 14 de agosto de 2018

Jogadores de cartas

Meus quadros favoritos


Paul Cézanne


Dez chamamentos ao amigo 2



II

Ama-me. É tempo ainda. Interroga-me.
E eu te direi que o nosso tempo é agora.
Esplêndida avidez, vasta ventura
Porque é mais vasto o sonho que elabora

Há tanto tempo sua própria tessitura.

Ama-me. Embora eu te pareça
Demasiado intensa. E de aspereza.
E transitória se tu me repensas.


Júbilo, memória, noviciado da paixão
In Da poesia, Hilda Hilst, Comp. das Letras, 2017

Mata um homem e come


Da série
Mais 47 cenas do romance familiar


Menino bem pequeno, duas falas de minha mãe soavam-me incompreensíveis, enigmáticas mesmo, não faziam qualquer sentido, com a agravante de que eu não dispunha do vocabulário de hoje para enfrentá-las, o que me causava indiscutível angústia e irritação maior ainda. O que será que ela quer dizer com isso, perguntava-se o menino pequeno.
            – Mãe, tô com fome.
            – Mata um homem e come!
            Como assim, mata um homem e come? Se eu repetia Tô com fome, lá vinha ela com a mesma absurda resposta. Já podia compreender que a ordem não era para ser obedecida literalmente. Então, o quê?
            Hoje eu sei, era apenas uma rima.
            A segunda fala, não menos misteriosa, causava-me ainda maior irritação, pois trazia um quê de obscenidade, o que era imperdoável, vinda de minha mãe. Quando o menino pequeno era contrariado em sua vontade de reizinho, reagia com ostensiva raiva, inconformado. Ao que a mãe retrucava:
            – Tá com raiva? Tira a cueca e pisa em cima.
            Não me lembro se naquele tempo eu já usava cuecas – palavra carregada de sensualidade! –, mas como seria possível que minha raiva passasse ao pisar numa cueca? A raiva escoaria pelo chão qual raio vindo do céu em dia de tempestade? 
            Incrível mesmo era o efeito de tais palavras: de início a raiva aumentava, para em seguida diminuir, até desaparecer. A mãe não conhecia a expressão, mas já sabia como “desmoralizar o sintoma”.