Recebi do meu amigo e médico Dr. João
Nunes – um médico que lê –, um primor de microconto, postado ontem neste Louco,
com a devida autorização do autor, sob o título Adultério revelado. Um microconto basta por si mesmo, dispensa
explicações ou comentários. Cabe ao leitor fazer o trabalho de multiplicar
ideias a partir do texto curtíssimo.
Mas é tão bom o microconto do João
Nunes que não resisto à tentação de pelo menos enumerar algumas possíveis
conjecturas a partir do mesmo.
Reproduzo-o aqui:
Amor, não bata numa filha que não é sua.
São apenas 40 toques!
(O twitter permite 140 toques, e este critério tem sido empregado por muitos
adeptos do microconto, incluindo este blogueiro.) Mas com apenas 30 por cento
deste espaço, João conta uma história complexa, rica em possíveis desdobramentos,
com introdução, desenvolvimento e conclusão. Conclusão? Bem, isso é uma outra
história.
Apresento ao leitor meu exercício de especulações.
1 – “Amor”: a primeira palavra do conto introduz importante caráter da
relação; a mulher é carinhosa, delicada, cuidadosa, amorosa, a despeito do fato
que será enunciado em seguida;
2 – “amor, não bata”: o sentimento amoroso e o pedido subsequente aparentemente
expressam sentimentos opostos, conflitantes, dramáticos; porém, parece que o
pedido também é formulado de maneira delicada, mas firme, numa fala decisiva,
de quem tem autoridade para fazê-lo; é praticamente uma ordem; a continuação da
história há de explicar o caráter e a natureza desta autoridade; até aqui,
temos a Introdução do conto;
3 – “não bata numa filha”: o elemento decisivo é introduzido na
história: uma criança; o homem é portanto um espancador de crianças; ao menos
desta vez, ele espanca, o que acrescenta dramaticidade à história;
4 – mas a mulher, mesmo assim, trata-o por “amor”; que relação é esta?;
a mãe encontra-se dividida entre sua filha e seu homem?; é completamente
dominada pelo companheiro?; este o Desenvolvimento
da história;
5 – até que ela resolve utilizar-se da referida autoridade: “numa filha
que não é sua”. A frase é um verdadeiro soco no estômago! Do homem e do leitor!
A revelação é feita de modo ainda delicado, pela economia de palavras, mas ao
mesmo tempo violento, também pela economia de palavras;
6 – o adultério é revelado da maneira mais direta possível, não deixa
dúvida sobre a paternidade da criança: a criança não é filha do espancador;
7 – o que fará agora o homem violento, passado o susto da súbita
revelação? Haverá de espancar a própria mulher, que o trata com “amor”?;
8 – e se o homem já tinha conhecimento prévio do adultério, de que ele
não era de fato o pai da menina? Talvez aquele não tivesse sido o primeiro
episódio de agressão física; estaria a mãe “acostumada” já com tal violência,
contra a criança e até mesmo contra si própria? Não é raro, por razões as mais
diversas, que mulheres “aceitem” tal tipo de tratamento, impotentes,
paralisadas, diante de situações para as quais não têm coragem ou recursos emocionais
para enfrentar;
9 – e se não houve adultério? A criança poderia ser fruto de
relacionamento anterior; então o tratamento “amor” talvez se justifique; a mãe
reconhece o ciúme que a criança desperta no homem dela, e ciúme é ciúme!;
10 – esta última possibilidade agora parece-me bastante plausível, mas
não foi a primeira que me ocorreu; por quê?; o que terá ocorrido ao leitor logo
após uma primeira e rápida leitura? O título dado ao microconto induz o leitor
a uma certa conclusão; talvez o título pudesse ser menos explícito, ou até
mesmo fosse dispensável: Sem título; estamos falando da Conclusão do conto;
11 – esta a essência do microconto: o que o leitor introduz de seu, na
história apenas esboçada, e a conclusão, portanto, depende do leitor, isso quando
há conclusão possível; caso não haja conclusão, que o leitor se vire com seu
desejo de controle sobre tudo e todos...
Outras tantas
possibilidades e desdobramentos poderiam ser aventados. Deixo a tarefa ao
leitor amigo, caso tenha paciência e apreciado o exercício aqui exposto.
Parabéns ao Dr. João
Nunes, um médico que lê e escreve.