terça-feira, 12 de novembro de 2013

20. Esta noite sonhei com a Morte.


Esta noite sonhei com a Morte.
Encontrei no quintal de minha casa uma de minhas cadelas, Falena, a quem dedico especial carinho, com um rasgo enorme na barriga. Não era uma ferida linear, incisão cirúrgica, realizada com bisturi ou faca afiada; eram múltiplos rasgos irregulares, tortuosos, os tecidos dilacerados, porém sem qualquer sangramento. Com as mãos, eu afastava cuidadosamente as bordas das feridas e via o interior da cavidade abdominal. Não havia vísceras, a cavidade estava completamente vazia, o que me causava angústia extrema. Pensei imediatamente em ligar para Ana, a veterinária, sempre cuidadosa com meus cães, amorosíssima – abraça e beija e conversa com eles sempre que vão à consulta.
Mas tinha já a certeza, no sonho, que Ana nada poderia fazer: as vísceras já haviam desaparecido, a cavidade estava completamente vazia. Voltava a pensar em Ana e em seus cuidados, recorrentemente, parecia-me a única possibilidade de salvação.
Às tantas, saí pelo quintal à procura de um bicho qualquer, estava certo de que um animal feroz era o responsável pelos estragos, e que havia devorado as tripas da cadela. Nada encontrei. 
Voltei ao meu cão estendido no chão, agonizante, portanto ainda vivo, abri novamente a ferida e constatei que realmente o abdome estava vazio. Não havia esperança de que pudesse sobreviver.
Acordei tomado por intensa angústia.

Ana, a veterinária, representa o amor da mãe, incondicional, aquele único capaz de nos salvar dos perigos desta vida – a necessidade de ser cuidado, bem cuidado, cuidado com amor, que surge desde o nascimento e perdura por toda a vida. Ressurge nas situações ameaçadoras que nos remetem àqueles tempos mais primitivos, o que vale também para os primórdios da humanidade, quando a sensação de desproteção era extrema. O homem só podia apelar mesmo para a Mãe Natureza. Ou ao seu equivalente maior, um deus todo-poderoso organizador desta mesma Natureza, capaz de oferecer proteção incondicional.
Ana, a veterinária, sabe conversar! É disso que precisamos quando a coisa aperta. (Uso a palavra coisa, que diz tudo e nada, e vem de um tempo onde não havia palavras que exprimissem determinados sentimentos.) Precisamos tão somente de alguém que converse conosco, que esteja do nosso lado, mesmo, ou especialmente, quando seja para morrer.
As vísceras são o representante da Vida. Sem elas não há vida. Nos primórdios, somos apenas tripas. (“O ego é antes de tudo corporal”, assinalou Freud.) Tantas vezes conferi o abdome do cão durante o sonho, e encontrei-o sempre vazio (o que explica a intensa angústia ao longo do sonho), até a constatação definitiva de que as tripas haviam desaparecido. Ana era minha esperança de vida. Até que concluí que ela já não podia me salvar.
Procurei por alguém a quem pudesse responsabilizar por aquela circunstância, o Bicho de garras enormes e afiadas, causador das múltiplas feridas dilacerantes, no sonho o representante da Morte. Sempre buscamos por um responsável pelos nossos infortúnios. Alguém precisa ser o responsável (culpado). É difícil assumir nossa própria responsabilidade perante a vida, especialmente se necessitamos de uma explicação ou justificativa plausível para os infaustos acontecimentos ao longo desta mesma vida. Aqui voltamos às duas condições primitivas a que estamos presos: a eterna busca da mãe (ela era a fonte de amor e ódio no princípio da vida), e à necessidade da existência de um deus a quem possamos responsabilizar por tudo, para o bem ou para o mal.
No sonho, nada encontrei. Não havia mais esperança de viver. É a falta de sentido da vida, o único sentido desta vida. Quando podemos admiti-lo, dissipa-se a angústia ao despertar.
Esta noite sonhei com a Morte.

inocência




                                   sobre o túmulo
                                          gabriela
                                          dança
                                   ainda não conhece
                                   o lado mais triste
                                   (e verdadeiro)
                                   da vida
                                                 a certeza
                                                  da morte