Esta noite
sonhei com a Morte.
Encontrei
no quintal de minha casa uma de minhas cadelas, Falena, a quem dedico especial
carinho, com um rasgo enorme na barriga. Não era uma ferida linear, incisão
cirúrgica, realizada com bisturi ou faca afiada; eram múltiplos rasgos
irregulares, tortuosos, os tecidos dilacerados, porém sem qualquer sangramento.
Com as mãos, eu afastava cuidadosamente as bordas das feridas e via o interior
da cavidade abdominal. Não havia vísceras, a cavidade estava completamente
vazia, o que me causava angústia extrema. Pensei imediatamente em ligar para
Ana, a veterinária, sempre cuidadosa com meus cães, amorosíssima – abraça e
beija e conversa com eles sempre que vão à consulta.
Mas tinha já
a certeza, no sonho, que Ana nada poderia fazer: as vísceras já haviam
desaparecido, a cavidade estava completamente vazia. Voltava a pensar em Ana e
em seus cuidados, recorrentemente, parecia-me a única possibilidade de salvação.
Às tantas,
saí pelo quintal à procura de um bicho qualquer, estava certo de que um animal
feroz era o responsável pelos estragos, e que havia devorado as tripas da
cadela. Nada encontrei.
Voltei ao
meu cão estendido no chão, agonizante, portanto ainda vivo, abri novamente a
ferida e constatei que realmente o abdome estava vazio. Não havia esperança de
que pudesse sobreviver.
Acordei
tomado por intensa angústia.
Ana, a
veterinária, representa o amor da mãe, incondicional, aquele único capaz de nos
salvar dos perigos desta vida – a necessidade de ser cuidado, bem cuidado,
cuidado com amor, que surge desde o nascimento e perdura por toda a vida.
Ressurge nas situações ameaçadoras que nos remetem àqueles tempos mais
primitivos, o que vale também para os primórdios da humanidade, quando a
sensação de desproteção era extrema. O homem só podia apelar mesmo para a Mãe
Natureza. Ou ao seu equivalente maior, um deus todo-poderoso organizador desta
mesma Natureza, capaz de oferecer proteção incondicional.
Ana, a
veterinária, sabe conversar! É disso que precisamos quando a coisa aperta. (Uso a palavra coisa, que diz tudo e nada, e vem de um
tempo onde não havia palavras que exprimissem determinados sentimentos.)
Precisamos tão somente de alguém que converse conosco, que esteja do nosso
lado, mesmo, ou especialmente, quando seja para morrer.
As
vísceras são o representante da Vida. Sem elas não há vida. Nos primórdios,
somos apenas tripas. (“O ego é antes de tudo corporal”, assinalou Freud.)
Tantas vezes conferi o abdome do cão durante o sonho, e encontrei-o sempre
vazio (o que explica a intensa angústia ao longo do sonho), até a constatação
definitiva de que as tripas haviam desaparecido. Ana era minha esperança de
vida. Até que concluí que ela já não podia me salvar.
Procurei
por alguém a quem pudesse responsabilizar por aquela circunstância, o Bicho de
garras enormes e afiadas, causador das múltiplas feridas dilacerantes, no sonho
o representante da Morte. Sempre buscamos por um responsável pelos nossos
infortúnios. Alguém precisa ser o
responsável (culpado). É difícil assumir nossa própria responsabilidade perante
a vida, especialmente se necessitamos de uma explicação ou justificativa
plausível para os infaustos acontecimentos ao longo desta mesma vida. Aqui
voltamos às duas condições primitivas a que estamos presos: a eterna busca da
mãe (ela era a fonte de amor e ódio no princípio da vida), e à necessidade da existência
de um deus a quem possamos responsabilizar por tudo, para o bem ou para o mal.
No sonho,
nada encontrei. Não havia mais esperança de viver. É a falta de sentido da
vida, o único sentido desta vida. Quando podemos admiti-lo, dissipa-se a angústia
ao despertar.
Esta noite
sonhei com a Morte.