Galeria de Família
quinta-feira, 1 de abril de 2021
Esta vida não presta
Epigrama para Emílio Moura
Tristeza de ver a tarde cair
como cai uma folha.
(No Brasil não há outono
mas as folhas caem.)
Tristeza de comprar um beijo
como quem compra jornal.
Os que amam sem amor
não terão o reino dos céus.
Tristeza de guardar um segredo
que todos sabem
e não contar a ninguém
(que esta vida não presta).
In Alguma poesia (1930)
Giannetti experimenta o anel
Ainda no prefácio, o autor adverte: “O corpo vê-se; o coração advinha-se. Silêncios, segredos, manobras, despistes. Que sabem os outros do que nos vai pela alma? O que sabemos, afinal, nós mesmos? Respeito às leis e costumes morais à parte, o que significa ser – não só parecer – ético? Como a certeza da impunidade mexeria com o nosso modo de ser e agir?” O primeiro parágrafo já instiga. Falo de O anel de Giges, de Eduardo Giannetti, Companhia das Letras, 2020.
Antes de qualquer outro comentário, o livro é tremendamente acessível, a despeito da enorme erudição do autor; a leitura é agradabilíssima, fluente; a escrita, o estilo, são da melhor qualidade literária. Dá gosto ler.
Bem, o assunto é surpreendente! Giannetti explica ainda no prefácio: “O experimento mental da fábula de Giges permite abordar o comportamento humano e a ética pelo prisma do anel. O que esperar de uma pessoa comum detentora do anel? Como provavelmente reagiria e o que faria com tal poder? Humilde pastor, o Giges da fábula de Gláucon transfigurou-se: foi para a capital do reino, seduziu a rainha, assassinou o rei com a cumplicidade dela, usurpou o trono da Lídia, tentou subornar os deuses e tornou-se fabulosamente rico. A posse do anel atiçou a fera da ambição desmedida e fez visível o sonho de glória e poder adormecido em sua alma. Mas quão representativo ou generalizável é o modelo do Giges-sem-lei?”
Sugiro que um provável leitor do Anel, antes de iniciar a leitura propriamente dita, se detenha por alguns minutos a estudar o índice do livro, disposto em oito partes, que detalham com minúcia o escopo da obra. Giannetti inicia por Heródoto e Platão e termina por perguntar: “E agora, Giges? Olhemo-nos nos olhos. Sem intermediários. E se o anel que Rousseau preferiu jogar fora viesse parar no dedo de um de nós?”
O último capítulo, Devaneios do viajante solitário: coração a nu, é mesmo surpreendente! O autor dá um cavalo-de-pau, subverte completamente o estilo, a escrita torna-se fragmentada, são pensamentos esparsos, ideias inacabadas, ousado exercício intelectual sobre os usos e abusos do anel pelo próprio autor.
Belíssimo livro, em minha modesta opinião.