Mais 47 cenas de um romance familiar
A Folha de S. Paulo completou ontem 100 anos de existência, o que não é pouco num país como o nosso, que não cultiva tradições e padece cronicamente de desvalida economia. Parabéns aos responsáveis pela façanha.
O que desejo mesmo é contar a história da presença desse objeto – o jornal –, em nossa família. Desde menino pequeno, vivendo no Vale do Paraíba, vejo meu pai cumprir seu ritual diário de ler o jornal. À mesa, ele abria o exemplar de O Estado de S. Paulo e, cuidadosamente, virava página após página, mantendo o caderno impecável alinhado direito, como se não houvesse sido tocado. Finda a leitura, dobrado o jornal, ele podia ser devolvido à banca, como se não fora lido; mas agora era a vez do restante da família.
Enquanto morávamos no interior, o Estadão era o preferido do pai, bairrista empedernido. A família se mudou para o Rio de Janeiro; então alegava ele dificuldade para encontrá-lo nas bancas; virou casaca, adotou o Jornal do Brasil, um grande jornal àquela época, meados dos anos 60. Seu Suplemento Literário, com crônicas e poemas de um tal de Carlos Drummond de Andrade, nunca pôde ser suplantado pelas Ilustradas, Ilustríssimas e Cadernos B da vida.
O ritual persistia e ai daquele que ousasse abrir um caderno que fosse antes do pai; a reação vinha furiosa diante da verdadeira profanação. Nossa mãe, para contrariar (diga-se, o pai contrariava também), lia O Globo, periódico chinfrim à época. (Hoje é jornal de respeito.) Aos domingos, à hora do almoço, a tertúlia de sempre: qual o melhor, o JB ou O Globo?
Ao chegar em Brasília, nos idos de 73, procurei continuar lendo o JB, o que se mostrou impossível: a cidade era uma província, oferecendo apenas dois jornais locais, ambos sofríveis. Desde então adotei a Folha como preferido, e a leio até hoje, virtualmente durante a semana, no indefectível papel aos sábados e domingos. Nos fins de semana recebo o Estadão, porque não se pode, nem se deve apagar a infância.