sábado, 20 de fevereiro de 2021

Folha centenária

Mais 47 cenas de um romance familiar



Ofir em Cabo Frio

 

A Folha de S. Paulo completou ontem 100 anos de existência, o que não é pouco num país como o nosso, que não cultiva tradições e padece cronicamente de desvalida economia. Parabéns aos responsáveis pela façanha.

            O que desejo mesmo é contar a história da presença desse objeto – o jornal –, em nossa família. Desde menino pequeno, vivendo no Vale do Paraíba, vejo meu pai cumprir seu ritual diário de ler o jornal. À mesa, ele abria o exemplar de O Estado de S. Paulo e, cuidadosamente, virava página após página, mantendo o caderno impecável alinhado direito, como se não houvesse sido tocado. Finda a leitura, dobrado o jornal, ele podia ser devolvido à banca, como se não fora lido; mas agora era a vez do restante da família. 

            Enquanto morávamos no interior, o Estadão era o preferido do pai, bairrista empedernido. A família se mudou para o Rio de Janeiro; então alegava ele dificuldade para encontrá-lo nas bancas; virou casaca, adotou o Jornal do Brasil, um grande jornal àquela época, meados dos anos 60. Seu Suplemento Literário, com crônicas e poemas de um tal de Carlos Drummond de Andrade, nunca pôde ser suplantado pelas Ilustradas, Ilustríssimas e Cadernos B da vida.

            O ritual persistia e ai daquele que ousasse abrir um caderno que fosse antes do pai; a reação vinha furiosa diante da verdadeira profanação. Nossa mãe, para contrariar (diga-se, o pai contrariava também), lia O Globo, periódico chinfrim à época. (Hoje é jornal de respeito.) Aos domingos, à hora do almoço, a tertúlia de sempre: qual o melhor, o JB ou O Globo?

            Ao chegar em Brasília, nos idos de 73, procurei continuar lendo o JB, o que se mostrou impossível: a cidade era uma província, oferecendo apenas dois jornais locais, ambos sofríveis. Desde então adotei a Folha como preferido, e a leio até hoje, virtualmente durante a semana, no indefectível papel aos sábados e domingos. Nos fins de semana recebo o Estadão, porque não se pode, nem se deve apagar a infância.

Boas companhias

Política sem palavras 


Foto: Reprodução/Instagram

Longe dos homens



 

Um bom título valoriza um filme; é o caso de Longe dos Homens (Loin des hommes), dirigido por David Oelhoffen e estrelado por Viggo Mortensen (Daru) e Reda Kateb (Mohamed), cuja estreia ocorreu em 2014. O filme é inspirado (e não baseado) no conto de Albert Camus intitulado O hóspede, do volume O exílio e o Reino (Record, 1997). (Está no TeleCine.)

            A história se passa na Argélia, ainda colônia francesa, no período que antecedeu a Guerra da Independência, anos 50. Em meio à paisagem seca, desértica, árida ao extremo, localiza-se a escola onde leciona e mora o professor Daru, um prédio baixo, de bom tamanho, no meio do nada. A fotografia é belíssima, apesar do nada. No filme somos logo apresentados à classe: espaçosa sala de aula, carteiras bem postas, o quadro-negro, um grande mapa da África, os pequeninos atentos à fala do afetuoso  professor. (No conto de Camus a presença dos alunos é apenas sugerida.)

            Daru, embora argelino, descende de família espanhola, e por isso é rejeitado tanto pelos franceses quanto pelos colonizados; ele é determinado em seu objetivo:  alfabetizar as crianças daquele ermo. O  trabalho é violentamente interrompido por um certo militar que traz até a escola um árabe como prisioneiro e incumbe o professor de conduzi-lo à cidade mais próxima onde será julgado pelo assassinato de um primo.

            A princípio o professor recusa a estúpida tarefa, discute com o militar, sugere ao prisioneiro que fuja, quando afloram interessantes dilemas éticos e filosóficos entre os personagens. (O conto acaba por aqui.) Daru decide levar o prisioneiro, e a partir de então diretor e roteirista criam narrativa repleta de ação com participação dos rebeldes argelinos, e ao final, do exército francês. Violência, ameaça constante de morte, ética e filosofia estão presentes em todo o transcorrer do drama.

            (Repete-se, às tantas, a velha desculpa para ações criminosas, em especial para os crimes de guerra: “Eu apenas cumpro ordens”, informa o oficial francês.)

Ao final, como que por milagre, Daru e Mohamed são libertos; o professor retorna à escola; o árabe escolhe seu destino. O filme termina com o aviso que aquela será a última aula – a guerra está para começar –, o que enche de lágrimas os olhos das crianças.

            No início do texto informei que Longe dos homens não se baseia no conto de Camus, pois ele se refere apenas aos minutos iniciais do filme, a apresentação da paisagem e dos protagonistas. Mas é extraordinário que um diretor de cinema, provavelmente com a ajuda de um bom roteirista, que ambos possam se inspirar em Camus e elaborar história tão rica em aspectos humanos e históricos, a partir de um conto quase singelo.

Um raro exemplo (ou nem tão raro assim) do cinema que supera a literatura.