Resumo
de conferência
a
ser proferida na
Faculdade
de Medicina, UnB/HUB.
Se vamos tratar de Leitura, melhor começar pelo
princípio, com uma recomendação bem recente dos pediatras: que os pais leiam
livros de histórias para seus bebês! Este ato estimula a aquisição da linguagem
e aprimora a capacidade de comunicação das crianças, o haverá de servir para a
vida toda.
Mas as minhas palavras são dirigidas especialmente aos
médicos (e por que não a seus pacientes?), e ao citar atitudes que repercutirão
por toda a vida, é preciso ressaltar que a formação do médico não tem início na
Faculdade de Medicina. A “formação” do ser humano inicia-se quando ele nasce
(há quem diga, que ainda antes do nascimento...).
Freud descreveu o que chamou de impulso epistemofílico
nas crianças pequenas, em particular a curiosidade a respeito da origem dos
bebês e da vida sexual dos adultos. Esta curiosidade, inata no homem, faz com
que desde cedo ele busque o conhecimento. A leitura constitui-se num importante
facilitador nessa busca, o que, mais uma vez, também vale para toda a vida.
Uma boa Educação, no sentido mais amplo da palavra, desde
a infância, passando pela adolescência, haverá de propiciar ao jovem que chega
à universidade melhores condições para a aquisição de conhecimentos
profissionais, seja lá em que área for. O contato com as Artes em geral, e em
particular com a Literatura, faz parte desta formação, tão importante para
aquele que deseja ser um bom médico.
Com relação à inserção da Literatura nas Artes em geral,
é no mínimo curiosa a observação feita por Vincent van Gogh em carta endereçada
ao irmão Theo, em que o renomado
pintor afirma:
“Há muita gente, especialmente entre nossos colegas, que
imagina que palavras nada significam. Ao contrário, é tão interessante e
difícil dizer bem uma coisa quanto pintá-la. Há a arte das linhas e cores, mas
há a arte das palavras, o que vem a ser o mesmo.”
Bem, nosso jovem estudante chega finalmente à universidade,
para o difícil curso de formação de médicos. E lá, durante todo o curso, os
professores procuram ensinar:
– O que o
médico pode fazer por seu paciente?
Penso que a
questão primordial não é bem esta, e sim:
– O que o médico pode fazer por si próprio?
Depois de
aprender a ajudar-se, então ele poderá ajudar o paciente. (Pouco antes da
decolagem de um avião, a comissária de bordo avisa aos passageiros: em caso de
despressurização da cabine, coloque a máscara de oxigênio primeiro em você, e
depois na criança que está a seu lado.)
Em outras palavras, a leitura oxigena o cérebro!
Aqui cabe um alerta: De que leitura estamos falando? Do
texto técnico-científico ou daquele de caráter humanístico? Ora, não se faz um
bom médico sem uma sólida formação científica, que deve manter-se atualizada ao
longo de toda a vida profissional. Quanto a isso não há discussão. (O charlatão
dispensa este pré-requisito.)
Estamos a falar, pois, da leitura humanística, e a
pergunta que agora se impõe é: O que ler e o que não ler? Por princípio, não
leiam autoajuda. Leiam Alta ajuda,
título do interessante livro de Francisco Bosco (Ed. Foz, 2012).
Em seus Aforismos,
Arthur Schopenhauer afirma:
“A arte de não ler é muito importante. Consiste em
não sentir interesse algum por aquilo que está a atrair a atenção do público
numa determinada altura. Quando um panfleto político ou eclesiástico, um
romance ou um poema estão a causar grande sensação, não devemos esquecer-nos de
que quem escreve para tolos tem sempre grande público. Uma condição prévia para
ler bons livros é não ler os maus: a nossa vida é curta.”
A primeira e mais direta consequência do hábito da boa leitura
é que ela aprimora a capacidade de expressão/comunicação do indivíduo, o que
afeta de modo decisivo e para melhor a relação médico-paciente.
Aquele que lê o Édipo
tirano, de Sófocles, escrito há 427 anos a.C., é capaz de compreender
melhor o psiquismo do paciente e seu próprio modo de pensar e sentir.
Do mesmo modo que a Bíblia
Sagrada foi considerada o livro mais importante do primeiro milênio d.C., Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de
Cervantes Saavedra (1547-1616) é tido como o grande livro do segundo milênio.
Shakespeare nos ensina a reconhecer e lidar melhor com os
nossos sentimentos. Em Hamlet, nos auxilia a lidar com a
dúvida, a incerteza e o imprevisto – é a vida, mesma. Não há profissional que
mais necessite deste aprendizado que o médico. Em Otelo, a compreender um dos mais terríveis sentimentos humanos, o
ciúme. E em Rei Lear, a nos precaver
dos difíceis e inevitáveis embates familiares.
Publicado em 1900, prenunciando um novo século no desejar
do autor, A interpretação dos sonhos,
de Sigmund Freud, promoveu verdadeira revolução no pensamento humano, assim
expressa nas palavras de Harold Bloom, autor do Cânone Ocidental: “A Literatura pode ser dividida em duas fases,
antes e depois de Freud.”
Nesse mesmo ano publicou-se entre nós Dom Casmurro, do genial Machado de Assis
(1839-1908), profundo conhecedor da alma humana, e que até hoje tem muito a nos
ensinar.
Há poucos dias comemorou-se os cem anos de A Metamorfose, de Franz Kafka, e que
traz, talvez, o período inicial mais famoso e intrigante de toda a literatura:
“Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos,
encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso.”
Se
fosse preciso escolher o melhor livro da literatura brasileira, nonada, eu não
haveria de pestanejar, Grande Sertão:
Veredas, de Guimarães Rosa, um médico de formação.
Não
podem ficar de fora de qualquer lista de bons livros O Evangelho Segundo Jesus Cristo e o Memorial do convento, de José Saramago, nosso único Nobel de Literatura
da língua portuguesa.
Wilfred R. Bion (1897-1979), psicanalista inglês nascido
na Índia, cunhou o termo “expansão psíquica”, comparando-a a uma espiral
ascendente e expansiva, referindo-se à potencialidade da mente humana, a de
expandir-se sempre. Pois a leitura estimula a expansão psíquica. Além do que alimenta a ideia,
fundamental para o bom exercício da medicina, de que cada paciente é único,
como cada autor, cada pessoa, cada médico.
Concluo
esta conferência salientando a necessidade, por parte do médico, de compreender
a linguagem simbólica de seu paciente, em especial daquele que vive situações
extremas, como o chamado paciente terminal. Há duas maneiras de se aprender a reconhecer
e traduzir esta linguagem simbólica: através da prática da Psicanálise, e da
leitura de Poesia. Esta última permanece ao inteiro alcance de todo e qualquer
médico ao longo de sua vida.
Para
ilustrar tal afirmação, transcrevo o poema Os
ombros suportam o mundo, de Carlos Drummond de Andrade, extraído do livro Sentimento do mundo.
Chega um tempo em que não se diz mais: meu
Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.
Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem
enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.
Pouco importa venha a velhice, que é a
velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro
dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando
bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os
delicados) morrer.
Chegou um tempo em
que não adianta morrer.
Chegou um tempo em
que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem
mistificação.
Em
conclusão, respondendo à pergunta que dá título a esta conferência, afirmo que:
Sim, o médico que lê pode
tornar-se um médico melhor!
Em tempo, meus agradecimentos, pelas contribuições ao tema, ao Dr. Paulo Sergio Viana, um médico que lê.