Encantado por este pequeno desenho, os olhos a marejar, permaneci um longo tempo admirando-o. Se a mulher lava os pés do menino é porque os pés do menino estão sujos.
Imediatamente me veio à mente o poema de Fernando Pessoa, cujo primeiro verso é Num meio-dia de fim de primavera, em que o menino é completamente humano, e por isso suja os pés ao brincar na Terra. Reproduzo aqui as três primeiras estrofes que fazem parte do livro O guardador de rebanhos (F.P., Obra Poética, Nova Aguilar, 1976):
“Num meio-dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.
Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas –
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e justiça!”
Tanta coisa pode acontecer “Num meio-dia de fim de primavera”... Basta dar liberdade à imaginação, sentimentos e emoções. Não foi preciso nem era possível me lembrar de todo o poema de Pessoa, mas a força das ideias, expressas na melhor forma poética possível – “tornado outra vez menino, a correr e a rolar-se pela erva” –, foi suficiente para tornar aquele momento inesquecível.
O desenho pertence à Faculdade de Bellas Artes, Porto, Portugal.