Querido amigo,
você acaba
de me enviar uma verdadeira missiva, longa, cheia de pequenos e saborosos
detalhes, falando um pouco de tudo e de todos, que seria perfeita se fosse
enviada pelo correio, carta de verdade, manuscrita, com aquela sua caligrafia
de pediatra, assinada em baixo, S. Não tive outro remédio senão respondê-la de imediato,
e só não a envio manuscrita com minha caligrafia torta porque desejo que a
receba bem rapidinho, como manda essa nossa vida do século XXI (e também por
preguiça de ir aos Correios).
Não é fácil escrever ou até mesmo
conversar com um homem apaixonado! Corremos o risco de que ele não preste
atenção a uma única palavra proferida ou escrita, que tudo entre por um ouvido
e saia pelo outro, ou que entre pelos olhos mas não chegue aos neurônios, pois
encontra-se noutro mundo, e apenas este outro mundo lhe interessa. E só a
pessoa amada faz parte deste outro mundo, ninguém mais.
Decido correr o risco.
Principalmente porque gosto de escrever cartas, embora não tenha nada de
interessante para dizer. Ou tenho, mas os assuntos não haverão de interessar a
um homem apaixonado. Ao contrário, vão aborrecê-lo, entediá-lo à morte – modo
de dizer, força de expressão, pois a única coisa sobre a qual um homem apaixonado
não deseja falar é da morte, pois a vida se lhe mostra plena, abundante,
transborda de prazer, e ele deseja que este amor seja imortal (“enquanto dure”,
acrescentou o “Poetinha” desmancha prazeres).
Além da morte, há um outro assunto
proibido, porque correlato, do qual um homem apaixonado deseja passar bem
longe! A velhice. Como estou perto de completar 70 anos, e este número me
assusta, assim redondo, sonoro, um grito rouco, inapelável como a espada de
Dâmocles, o tema torna-se inevitável. Veja, meu querido amigo, já estou a falar
dele, sem mesmo uma introdução que o atenue, uma preparação para não assustar o
leitor: pronto, escrevo de supetão, a
velhice.
Falar da velhice é falar de achaques, dores, tombos (tropecei hoje no degrau da varanda e me estabaquei no
chão, por sorte não fraturei um osso nobre, como o colo do fêmur), doenças,
remédios, insônias, dispneias, broncoespasmos, lombalgias, e o pior de tudo,
esquecimentos! Ah! os esquecimentos! Principalmente o esquecimento de nomes
próprios: como era mesmo o nome daquele colega que encontramos em Londres, rapaz
certinho demais, e que foi pego com libras esterlinas falsas ao desembarcar na
ilha, ainda no aeroporto?
Falar da velhice é falar da morte e isso não interessa de modo algum a
um homem apaixonado.
Muito menos interessa falar de
política, em especial a nossa. Ou de futebol (embora o Palmeiras seja o líder
isolado do Brasileirão, por ora, o que me tem proporcionado imensa alegria,
veja você, meu amigo, o que ainda pode proporcionar alegria a um velho). Ou de
cinema, música, literatura, pois nada interessa a um homem apaixonado que não
seja falar da mulher amada.
Difícil escrever a um homem
apaixonado. Arrisco mesmo assim, para dizer que o nosso jardim continua lindo,
a despeito da inclemente seca do inverno no cerrado. Vez ou outra encontro uma
flor, tiro uma foto, faço um haicai, coloco no blog. Peguei a mania do haicai.
Veja você, querido amigo, acabo de fazê-lo, sem sentir:
encontro uma flor
componho foto e haicai
coloco no blog
E não é que a vida fica mais leve!!!
Minha vida de cirurgião foi toda desenvolvida na universidade. Gostava de dizer
que, para tudo que fazia, havia sempre alguém do lado a aprender, eu tentando
ensinar. Repartir, eis o hábito. Talvez seja o hábito de repartir que tenha me
levado ao blog. O que penso, o que sinto, o que vejo de interessante nesse
mundo tão desinteressante, procuro repartir, compartilhar. (Na maioria das
vezes, compartilho comigo mesmo, o que não é pouco...)
Por isso esta Carta A Um Homem Apaixonado vai pelo blog. Minha felicidade ao
vê-lo transbordando de felicidade, desejo reparti-la com o mundo, especialmente
com a mulher amada: basta que ela acesse o Louco por cachorros.
Grande abraço,
do amigo de sempre,
a.
(sem data)