Tão logo recebi a notícia pelo celular da própria Suzete,
tomei o primeiro voo para São Paulo, aluguei carro no aeroporto, rumei para a
cidade de A., distante aproximadamente 300 Km da capital, onde reside Suzete.
Não poderia deixar de prestar-lhe apoio num momento tão difícil.
Cheguei a
A. no começo da tarde e ainda encontrei Suzete na delegacia, exausta, diante de
interminável interrogatório sobre o assassinato. Confesso que levei um susto ao
ver nossa querida Suzete, pacífica cabeleireira, especialista em corte de
homem, envolvida em um crime. Sim, envolvida, ou por quê outra razão estaria então
sendo submetida àquele massacrante interrogatório?
Liberada
pelo delegado, sob a condição de não deixar a cidade em hipótese alguma, Suzete
levou-me para sua casa, respirou fundo e contou-me o sucedido. Reproduzo aqui
suas próprias palavras.
“André, nem
te conto. Sou eu quem abre o salão todas as manhãs, por ser a mais antiga e ter
a confiança de Albertina, a dona do estabelecimento. O tranco que levei ao ver
a cena foi como se levasse um soco na cara. Bem na minha cadeira, estirado,
quase caindo, estava o corpo de um homem completamente nu, a cabeça pendida
para trás, com uma palidez impressionante, mais parecia de cera, com uma
tesoura – a tesoura que utilizo para cortar cabelo de meus clientes – cravada
na virilha! No chão, uma enorme poça de sangue escuro.
Numa
primeira avaliação, o perito constatou que houve secção da artéria femoral
direita seguida de exsanguinação. Ou seja, o homem foi sangrado até a morte!
Fico
arrepiada só de lembrar, André. Mas que bom que você está aqui comigo, nunca
imaginei passar por uma situação dessas, fui eu quem encontrou o cadáver, bem
na minha cadeira, e com a minha tesoura cravada na virilha. O assassino (ou
assassina) deseja me incriminar, estou certa disso, daí a razão do
interrogatório do delegado que não acabava mais.
Na lógica
do delegado, o assassino sabe manejar uma tesoura com extrema destreza. Não
pude negar minhas habilidades... Mas jamais faria uma coisa daquelas: metade do
cabelo do homem estava intocada, a outra metade cortada rente, com máquina
zero. E o perito notou também um pequeno corte na parte superior da orelha
direita, sugerindo acidente no momento do corte de cabelo, fato bastante comum nas
barbearias mas coisa que eu jamais faria.”
Perguntei,
e quem é o morto? Gente conhecida sua, Suzete?
“As roupas
encontradas no chão não continham qualquer documento, não se sabe até agora
quem é o sujeito. André, mas eu tenho um suspeito. Melhor dizendo, uma
suspeita. Margarida não foi trabalhar hoje, e ela nunca falta. O telefone dela
não atende, fora de área. Sabe, ela é uma moça estranha, está no salão faz
poucos meses, sempre calada, corre o boato que ela mexe com feitiçaria, é o que
dizem, você deve conhecer o ditado: Salão de beleza e barbearia, paraíso da
fofocaria.”
Confesso
meu atordoamento com tanta informação, recebida em tão pouco tempo. Saímos para
comer alguma coisa, que eu ainda estava com o café da manhã, varado de fome.
Tentei mudar de assunto, perguntar como estava a vida de Suzete, se tinha
namorado, essa conversinha boba para distrair. Mas ela só podia falar do
assassinato, repetia a descrição da cena que encontrou ao chegar no salão, a
tesoura cravada na virilha... “Como era possível cravar a tesoura e o homem
permanecer estirado na cadeira? Então ele não reagiu, permaneceu imóvel diante
da tesourada? Ainda por cima nu? E que golpe certeiro, um único golpe e lá se
foi a artéria femoral? O cabelo cortado pela metade?” Suzete não parava de fazer perguntas a si
mesma, diante do crime inexplicável, atormentada pela suspeita que recaia sobre
ela.
Três dias
depois eu estava de mala pronta para voltar para casa, Suzete mais sossegada,
quando logo pela manhã ela recebe telefonema do próprio delegado, pedindo o
comparecimento dela à delegacia. Novo susto. Fiz questão de acompanhá-la,
identifiquei-me diante da autoridade, e para meu espanto, ouvi relato
extraordinário das investigações levadas a cabo até aquele momento. Eis a fala
do delegado, proferida com ares de profundo conhecedor do assunto, talvez até
mesmo se tratasse de um especialista:
“O arsênio (do
grego auripigmento amarelo) é conhecido desde tempos remotos assim como
alguns de seus compostos, especialmente os sulfetos.
Dioscórides e Plínio conheciam suas propriedades; Celso Aureliano, Galeno e Isidoro Largus sabiam de seus efeitos irritantes, tóxicos, corrosivos e sua ação parasiticida, e observaram suas virtudes contra a tosse, afecções da voz e dispneia.
Dioscórides e Plínio conheciam suas propriedades; Celso Aureliano, Galeno e Isidoro Largus sabiam de seus efeitos irritantes, tóxicos, corrosivos e sua ação parasiticida, e observaram suas virtudes contra a tosse, afecções da voz e dispneia.
Os médicos árabes usaram também
compostos de arsênio em inalação, pílulas e poções, e também em aplicações
externas. Durante a Idade Média os compostos arsenicais caíram no esquecimento
sendo relegados aos curandeiros que os prescreviam contra algumas
enfermidades. Roger Bacon e Alberto Magno se
detiveram no seu estudo.
O primeiro que o estudou em
detalhes foi George Brandt em 1633, e Johann Schroeder
o obteve em 1649 pela ação do carvão sobre
o ácido arsênico. A Jöns Jacob Berzelius se devem as
primeiras investigações acerca da composição dos compostos de arsênio. A partir
do século XVIII os compostos arsenicais conseguiram um posto de primeira ordem
na terapêutica até serem substituídos pelas sulfamidas e
os antibióticos.
Porém, o
arsênio continua sendo um veneno mortal, utilizado em muitos assassinatos. Pois
nosso perito chamou-me a atenção para a tonalidade cinza metálico encontrada na
extremidade da orelha direita do cadáver, exatamente no ponto onde havia um
corte provavelmente efetuado pela tesoura. Um rápido exame toxicológico revelou
forte presença de arsênio, a mesma substância sendo encontrada na tesoura
cravada na virilha do cadáver.”
O delegado
fez uma pausa solene e, cheio de si, proferiu a sentença final.”
“O homem
não morreu do ferimento na virilha, seguido de exsanguinação. Morreu envenenado
por arsênio. Depois de morto a tesoura foi cirurgicamente cravada, drenando o
sague do cadáver ainda fresco.”
E
arrematou:
“Dona
Suzete, a senhora trabalha com arsênio?”
Outro
susto! Suzete quase caiu da cadeira. “Arsênio? Como assim? O senhor acha que
fui eu quem matou o homem? Só porque estava na minha cadeira? Só porque a
tesoura era minha? O senhor não percebe que o assassino (ou assassina) deseja
me incriminar? Meu Deus, que loucura!”
O
interrogatório estendeu-se por toda a manhã, até que Suzete foi liberada, nas
mesmas condições já citadas; deveria permanecer à disposição do delegado.
Fiquei mais
um dia em A., Suzete ainda agitada, acreditando que a descoberta do arsênio na
tesoura só podia ser coisa da Margarida, tida com feiticeira.
Já em casa,
falo com ela duas ou três vezes ao dia, pelo Skype. O salão permanece
interditado. As buscas para a descoberta do criminoso (ou criminosa) continuam
intensas, o delegado empenhadíssimo em esclarecer o crime, presente em todas as
manchetes dos jornais, na Internet, Tweeter, Facebook, etc.
Procuro
acalmar Suzete, ainda agitada; não é para menos, está em apuros.