Fernandão 348 foi preso às vésperas
do Natal, após exaustiva blitz das polícias estadual e federal e das Forças Armadas,
num esforço sobre-humano para capturar aquele que era considerado o bandido
mais perigoso da cidade, quiçá do país, chefão do tráfico de drogas e armas na
maior favela do mundo. Foi trancafiado, afinal.
A favela entrou em luto fechado.
Havia gente chorando pelos cantos, gritos de lamentação, a tristeza era geral, pois
com a prisão de Fernandão 348 não haveria distribuição de panetones naquele
Natal! A criançada da favela tampouco ganharia brinquedos, bolas, carrinhos de
todos os tipos e tamanhos, bonecas de todos os tipos e tamanhos, bichos de pelúcia
coloridos, ursinhos, cachorrinhos, vaquinhas, boizinhos, monstrinhos – os prediletos
das crianças, na favela ou no asfalto – panelinhas e objetos de cozinha de
todos os tipos e tamanhos para as meninas, uniformes de futebol para os
meninos, que na favela as crianças ainda são divididas em meninos e meninas. Enfim,
não haveria Natal na favela.
Até mesmo os policiais que davam
plantão no local não escondiam seu desapontamento; eles sempre estavam incluídos
na lista dos presenteados.
Alguma coisa precisava ser feita.
Libertar Fernandão 348 da prisão de
segurança máxima onde se encontrava era missão impossível, até mesmo com a
possível interferência do ministro da justiça, pois aquela prisão havia se tornado
ato político emblemático para a corporação. Alguém sugeriu pagar propina para o
secretário de segurança do estado ou até mesmo para o governador, visando a
soltura do homem. A ideia não prosperou, impossível arrecadar a dinheirama
necessária em tão pouco tempo. Apelar para o supremo talvez fosse a solução,
mas havia o tal recesso.
Foi Carminha, menina de 9 anos, nascida
na favela, quem apresentou a ideia mais criativa, surpreendente mesmo, tão original
que até desse o resultado almejado: escrever uma cartinha ao próprio Fernandão
348, pedindo providências. Ela mesma, Carminha, se encarregaria da missão,
desinibida, atrevida como sempre.
Sentou-se em sua cama, no barraco de
sua mãe, e escreveu:
Rio de janeiro, 15 de
dezembro de 2017.
Querido e estimado
Senhor Fernandão 348
Eu me chamo Carminha, tenho 9 anos e
moro na sua favela. Foi minha a ideia de lhe escrever esta cartinha, primeiro
porque precisamos tratar do assunto dos presentes de Natal, e segundo porque eu
gosto muito de escrever cartas, apreciadas pela minha professora, por minha mãe,
que pai não conheço, até pelos meus colegas, alguns admiradores, outros
invejosos, mas eu não ligo para o que eles pensam, eu gosto mesmo é de
escrever, também escrevo histórias, Senhor Fernandão 348, depois posso lhe
mostrar algumas, pois acho que o senhor terá tempo de sobra para ler aí onde se
encontra.
Mas
vamos tratar do assunto principal, os presentes de Natal. A favela toda está
muito preocupada. Dizem que não haverá presentes porque Papai Noel está preso
(brincadeirinha minha, não fique zangado, Deus me livre disso). É por isso que
lhe escrevo, para pedir que envie por alguém a ordem para seu Substituto, que não
vou citar o nome aqui porque pode ser perigoso, para que ele faça a distribuição
dos presentes, principalmente os brinquedos para as criancinhas.
Desculpe
meu atrevimento por tratar desse assunto, mas o senhor deve saber onde está o
dinheiro para as compras de Natal, de modo que também mande avisar o Senhor Substituto
sobre isso.
Minha
mãe me disse que a maneira mais segura para o senhor dar a ordem e tudo mais é
através de seu advogado, o doutor Cacau, que além de ser o portador desta
cartinha, poderá trazer o recado em segurança, pois conforme minha mãe me
informou, ele é homem de confiança seu e do Senhor Substituto. (Desculpe outra
vez, ficar repetindo Senhor Substituto pra cá, Senhor Substituto pra lá, mas se
houver qualquer dúvida sobre quem seja ele, seu nome verdadeiro, o Senhor
também pode enviar a nomeação pelo doutor Cacau, porque isso é muito importante
para que alguém compre os presentes.)
Mas,
Senhor Fernandão 348, isso precisa ser feito loguinho mesmo, ou não teremos
tempo para fazer todas as compras, inclusive os panetones que eu ia me esquecendo
de falar.
Então
é isso. Espero que esta lhe encontre com saúde e na Santa Paz de Deus.
Com
a amizade de sua admiradora, desde já agradecida,
Carminha.
PS: Se o senhor
desejar, posso lhe enviar minhas histórias pelo doutor Cacau, com muito gosto
de minha parte. Espero que aprecie.
A cartinha chegou a tempo às mãos de
Fernandão 348!
FIM
Nota do autor
As lembranças de meu pai são muito fortes
nos meses de dezembro, mês em que ele morreu, há 20 anos. Perto do Natal
ressurge a história mil vezes contada em família, sempre motivo de graça e
riso.
Em um certo ano, o pai reuniu filhos,
noras, netos, alguns mais próximos, e fez a proposta do concurso: que cada um
escrevesse um Conto de Natal, e ele haveria de escolher o vencedor.
A reação dos ouvintes foi
inexpressiva, xoxa, insossa, nenhuma empolgação diante do desafio, para tristeza
do pai. Passou o Natal e ninguém escreveu conto algum.
Desde então, vez em quando, no mês
de dezembro, escrevo meu Conto de Natal, em homenagem ao pai, porém duvidando
que ele apreciasse meus heréticos escritos, logo no Natal.
Entretanto, espero que os poucos
leitores deste blog o apreciem. (Ao menos ficam conhecendo Carminha, que me
autorizou, naturalmente, a publicação de sua cartinha.)