segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Certas mortes...


Morreram recentemente, em curto espaço de tempo, alguns de forma trágica ou violenta, Eduardo Coutinho, Philip Seymour Hoffman, José Wilker, Gabriel García Márquez, Jair Rodrigues, Alan Resnais, Paco de Lucia, Shirley Temple, Luciano do Valle, Nadine Gordimer, Paulo Goulart, Bellini, James Garner, Rose Marie Muraro, Max Nunes, Plínio de Arruda Sampaio, Lauren Bacall, Rubem Alves, João Ubaldo Ribeiro, Ariano Suassuna, Robin Williams, Eduardo Campos. Perdoem-me os mortos não citados; não que os desmereça, mas são tantos.
            Algumas mortes causam perplexidade antes de tudo. Chocam pelo inesperado, como se, por uma razão ou outra, o morto estivesse acima do bem e do mal, e fosse imortal. A culpa não é do morto, nós é que nos iludimos. Quando ouvimos a frase Ninguém esperava que ele morresse, estamos falando da nossa própria fantasia de imortalidade.
            É preciso a morte inesperada, abrupta e violenta de uma personalidade de projeção nacional para que as pessoas se deem conta do imponderável da vida. Mas este mesmo imponderável está presente cotidianamente na vida de todos nós, e não nos damos conta disso, ou não queremos nos dar conta; às vezes, apenas não podemos. É muito forte, porque trata-se de uma defesa, a ilusão de que temos o controle sobre nossa própria vida.
Faz parte desta ilusão a busca e a crença em um determinado sentido para a vida. Creio que o sentido da vida é a falta de sentido da vida. E reconheço que esta não é uma ideia fácil de ser aceita pelo ser humano, que perde assim o apoio da ilusão de um deus-pai que tudo e a todos provê. Não há mais o consolo da religião, e ninguém gosta de ouvir A vida é assim mesmo!, pois isso não consola nos momentos de dor.
De qualquer modo, certas mortes servem para nossa reflexão, cada um com suas convicções, é verdade, mas sempre com a possibilidade de pensar sobre elas, com liberdade e sem dogmatismos.

Ebola e o demônio


Com gritos de “Ebola saia de nossas vidas, Ebola é trabalho do demônio, Deus acabe com o Ebola”, o pastor Konteh Saidu exortava os fieis da Igreja Universal do Reino de Deus em Freetown, capital de Serra Leoa, na semana passada, segundo a enviada especial da Folha, Patrícia Campos Mello.(1)
A Universal (este nome está se tornando cada vez mais verdadeiro, e deve ser lido ao pé da letra; já há dois templos em Serra Leoa) reúne até 2.600 pessoas nos cultos dominicais, segundo a jornalista.
            E completava o pastor: “A Bíblia diz que todos que acreditam em Deus não vão morrer, e Deus está acima dos médicos”.
            Só podemos classificar este tipo de pregação religiosa como medieval. Afeta, acima de tudo, os mais simples e ignorantes, ludibriados pelos falsos profetas.
            A crença de cada um deve ser respeitada, mas há limites para isso. Quando o bem estar de toda uma população está ameaçada, é dever de todos esclarecer, e não confundir com crendices.
  

Ser ou não ser...


O excelente Hélio Schwartsman, em crônica no sábado último na Folha de S. Paulo intitulada “Balbúrdia teológica” (1), defendeu a posição do Superior Tribunal de Justiça que inocentou de homicídio doloso o casal de pais, testemunhas de Jeová, que não autorizou transfusão de sangue em filha menor, que acabou morrendo. O articulista baseia-se no princípio de autonomia do paciente e seus familiares, o que significa para ele a resposta menos ruim nessas difíceis questões de bioética.
            Hélio afirma, e com razão, que o que define o dolo no homicídio é a intenção de matar. Evidentemente, este não se era o desejo dos pais da menina. E completa, com o brilhantismo de sempre:

“Não estou, é claro, afirmando que os pais agiram bem. Considero a ideia de que Deus não quer que transfundamos sangue uma tolice. Vou um pouco mais longe e afirmo que crer num papai do céu se encontra na mesma categoria. Mas, uma vez que nosso ordenamento jurídico permite e até incentiva a prática religiosa, é difícil sustentar que seguir um dogma equivalha a assassinato. E, depois que se aceita o vale-tudo dos discursos religiosos, não dá para dizer que a crença num Deus com pavor de transfusões seja objetivamente mais errada do que numa divindade que veta a contracepção ou que coleciona prepúcios. Só a autonomia confere alguma coerência a essa balbúrdia sanitário-teológica.”

            Agora, apresento para apreciação do leitor, uma situação específica, vivida por mim nos meus tempos de cirurgião. Já no centro cirúrgico de um determinado hospital, preparava-me para operar uma jovem com trauma abdominal, quando chega a notícia trazida por uma enfermeira, de que a família proibia que fossem feitas transfusões de sangue, pois eram testemunhas de Jeová. Logo que o abdome foi aberto, e constatada grande quantidade de sangue em seu interior, ocasionada por ruptura de baço, a paciente apresentou choque hipovolêmico – falência hemodinâmica, com pressão arterial próxima a zero, exatamente pela maciça perda sanguínea. Ou fazíamos a transfusão imediatamente, ou a paciente morria.
            Confesso que em momento algum aquela situação representou qualquer tipo de dilema para mim, seja ético, moral, religioso ou técnico-profissional. Várias bolsas de sangue foram transfundidas, o baço foi removido, com o consequente estancamento da hemorragia, a pressão arterial voltou ao normal, a paciente recuperou-se.
            Deixar que a paciente morresse naquela situação de urgência absoluta, quando não havia lugar e tempo para se discutir sobre o desejo da mesma ou dos familiares (o princípio da autonomia), pareceu-me uma alternativa impensável. Para mim, deveria prevalecer o primeiro princípio da Medicina, o da beneficência.
            Passado o episódio, ocorrido há muitos e muitos anos, restou-me um travo amargo na consciência. Para a pessoa que crê no pecado indelével que significa receber uma transfusão de sangue, o que a torna impura, para dizer o mínimo, para ela deve ser muito difícil conviver com o fato de ter recebido sangue estranho, para o resto da vida, penso eu. Mesmo que isso se constitua uma tolice, como afirma Schwartsman.
            O fato central de tudo isso, criador dos tais dilemas éticos, morais, religiosos, causador de tanto sofrimento, reside fundamentalmente na existência e prática do dogma, que por sua vez impede o ato de pensar, o que há de mais sublime no ser humano.