Rafael de Assis se orgulhava da profissão que escolhera, especialmente porque, dizia ele, era dos pouquíssimos no ramo em todo o mundo, e verdade seja dita, ele atingira mesmo fama internacional, requisitado por gentes das mais diversas línguas, sobretudo por países de alto nível em tecnologia. Basta dizer, os japoneses eram seu principal cliente.
Tudo começou quando Rafael ganhou do pai uma máquina fotográfica semiprofissional, de funcionamento bastante complicado para um menino de dez anos, e que despertou nele irrefreável fascínio: não pela máquina, mas pelo manual que a acompanhava. Escrito em inglês, o livreto, de formato pequeno, continha exatamente cento e cinquenta e nove folhas, repletas de detalhadíssimas ilustrações, cada número indicando a respectiva função de uma infinidade de botões, localizados na frente, atrás, embaixo, em cima daquela verdadeira obra de arte. Um mistério para o menino de dez anos, o artefato parecia impenetrável, guardado a mil chaves, todas contidas no precioso manual. Bastava decifrá-lo.
As duas únicas palavras do inglês que Rafael conhecia eram The End, porque apareciam sempre nos finais dos filmes de mocinho-e-bandido, O que quer dizer The End, mãe?, É o fim, meu filho, é o fim, respondia a mãe que não sabia muito mais que aquilo. Mas havia em casa um velho Michaelis inglês-português; foi o que bastou para que o obstinado menino – o Champollion do Vale – começasse a traduzir aquele emaranhado de informações.
Os pais da criança olhavam o novo comportamento do único filho com certa desconfiança, pois até mesmo o futebol com os colegas do Ginásio Estadual Flamínio Lessa ele deixou de lado, debruçado no livrinho, assim que chegava da escola. Continuava a ser o menino cordial de sempre, com boas notas, comportado, respeitoso para com os mais velhos, apenas um pouco mais calado.
Depois de um ano, o trabalho estava concluído, o manual da máquina fotográfica inteiramente traduzido para um caderno de duzentas folhas. A expectativa de Seu Paulo, pai do menino, era que Rafael tivesse encontrado sua vocação, e com ela, uma profissão que lhe garantisse sustento para o resto da vida, quem sabe se tornando até mesmo um reconhecido artista da Fotografia. Ao contrário, Rafa, como era tratado pelos amiguinhos, nunca mais encostou na Minolta. Para surpresa de todos, pediu emprestado ao pai o manual do carro, escrito em francês: um Fiat V8, de 1958!
O trabalho recomeçou, nos moldes do primeiro; agora o dicionário era o Larousse. Em três meses o manual estava completamente decifrado. (Seu Paulo pensou consigo mesmo, apenas pensou: Ou é um gênio, ou será um esquizofrênico, Deus nos livre...) Seguiram-se os manuais da máquina de costura Singer, da mãe; da geladeira Frigidaire; do novíssimo eletrocardiógrafo do Dr. Rubinho, cardiologista da cidade, que a fama de Rafael já corria mundo.
Rafael cresceu, concluiu o curso de Engenharia Mecânica, continuou a ser o rapaz educado de sempre, solícito, prestativo, inteligente, afetuoso com seus pais, grato pela educação que recebera. Casou-se com Beatriz, que conhecera na universidade, ela médica psiquiátrica. Eram felizes, ambos realizados profissionalmente; ela com seu consultório de grande reputação na região, Rafael dono de afamada firma especializada em Confecção de Manuais, com clientes, em sua maioria, do Japão.