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Autor não identificado
“E, porque estava quente, eu me encostara num local de sombra. Ouvi a música que acompanhava a entrada do par na igreja. E a melodia do órgão tinha algo de pungente, algo um tanto avesso àquele ritual, que deveria ser alegre. Contudo, não me emocionou.”
Marçal Aquino
O trecho acima faz parte do conto intitulado Num dia de casamento, de Marçal Aquino, publicado em Famílias terrivelmente felizes, na edição primorosa da Cosac Naify (2003). Me chamou atenção a última frase: “Faz muito tempo que uma música não me emociona de verdade.” Há três dias ela não me sai da cabeça.
A história parece singela: um homem sai de casa num sábado de nuvens pesadas, “calçando sandálias e um pouco magro”, para assistir de longe a um casamento. A música não o emociona. Na saída na igreja, um detalhe da noiva dá sentido ao episódio:
“Uma mecha de cabelo soltara-se do arranjo na cabeça e pendia em sua testa. Como um ponto de interrogação de cabeça para baixo. Talvez a mesma mecha que, alguns anos antes, eu vi balançando no vento que entrava pela janela do ônibus em que viajávamos, depois de deixar um hotel à beira da estrada.”
Ao voltar para casa o homem pensou em enviar um telegrama ao amigo analista: “MERDA VG MEU CARO PT”.
Voltemos à frase sobre a música que não emociona. Penso em duas possibilidades quando a música deixa de emocionar: ou o homem ouve música ruim, de um tipo que definitivamente não agrada, de mau gosto para aqueles ouvidos, ou o ouvinte está tomado por depressão. Não me refiro a episódio de tristeza, por mais intenso que seja; não, falo de depressão doença.
Quem está triste pode sentir algum alívio a ouvir uma música que o emocione. Os Noturnos, de Chopin, podem exercer tal efeito. Para quem sofre de depressão, qualquer música significa atordoamento, provoca confusão, chega a produzir dor psíquica, seja peça de um Bach, de um Mozart, de um Chopin.
Faz tempo que nosso homem que vai ao casamento não se emociona com a música. Ao final do conto ele pede socorro ao “amigo analista”, o que pode sugerir que esteja mesmo doente.
Quem estará doente? O protagonista do conto? (Se verdadeiro, o autor saberá disso?) O próprio autor do livro, cujo título exprime o oxímoro ‘felicidade terrível’? Ninguém está doente? A pergunta também poderá ser dirigida ao próprio leitor: por quê uma frase aparentemente simples de um conto despretensioso permanece três dias na mente do leitor, que chegou a interromper a leitura para pensar em possível significado oculto?
O leitor não sofre de depressão, porém utiliza-se de experiências anteriores, suas e de outrem, para pensar sobre o efeito dos Noturnos de Chopin em nosso espírito.