quinta-feira, 21 de setembro de 2017

Castanheiras em Paris



Aleia de castanheiras

Foto: Mercêdes Fabiana, set 2017, Paris.

Vaso de cristal

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Manet

Pequena fábula urbana


            A facção que dominava a favela há vários anos, sob o comando implacável de Zeca Pedalão, rachou. E rachou feio. O motivo nunca foi bem esclarecido, mas o certo é que havia mulher no meio. Zeca Pedalão, além de dominar o tráfico de drogas em toda a favela, era dono – isso mesmo, senhor proprietário – da neguinha mais bonita da comunidade, de nome Zenilde. Zenilde era de fechar o comércio, como se dizia antigamente. Cabelinho sarará, carinha de anjo, nariz de boneca, um corpinho de miss, era cobiçada em segredo por todo homem da favela, mas em segredo, que o medo de Zeca Pedalão era maior que o tesão.
            A facção rachou. Em plena manhã de domingo o grupo dissidente chefiado por Miguelão Boia Fria, muito bem armado, anunciou com rajadas de metralhadora quem mandava na favela a partir daquele momento. O morro tremeu. Zenilde tremeu, até porque havia recebido, na véspera, bilhetinho assinado MBF, dizendo Amanhã tu é minha! Zeca Pedalão manteve a calma, até que viu o morro ser invadido por traficantes de duas favelas vizinhas, a tomar partido de Miguelão Boia Fria.
            Ao meio-dia voou bala para todo lado, barulho ensurdecedor, tátátátátátátátátátátá, o reboco das paredes na frente dos barracos todo esburacado, as pessoas trancadas em banheiros precários mijando de pavor, deitadas debaixo da cama, escondidas atrás da geladeira, criança chorando sem parar, tátátátátátátátátátátá, bojão de gás explodindo com os tiros, incêndio, velhinhos gritando É o fim do mundo, ruas desertas, os atiradores posicionados em lajes estratégicas de onde podiam identificar o inimigo sem serem atingidos, tátátátátátátátátátátá, um inferno.
            Não se via polícia num raio de 10 Km. As Forças Armadas – Exército, Marinha, Aeronáutica –, que haviam prometido ajuda, não deixaram os quarteis. Os traficantes tomaram conta do pedaço, todos corajosos, destemidos, a defenderem seus pontos-de-droga com unhas e dentes e fuzis AR15. À noite, toque de recolher, quem está dentro não sai, quem está fora não entra.
            Dia seguinte o Governador, em solene pronunciamento, anunciou que a Polícia não interferiu para evitar mal maior, uma chacina. E continuou não interferindo por vários dias, de modo que a população permaneceu presa em suas próprias casas, as crianças sem escola – o que adoraram! – os traficantes com seu tátátátátátátátátátátá. Luta renhida, parecia não haver vencedor ou perdedor. Munição não faltava. Até quando, meu deus!
           Foi então que o líder da comunidade resolveu agir. Homem experimentado, do alto de seus 60 anos, mulato forte mas já grisalho, Benedito, ou Bené como era conhecido de todos, com autoridade de homem sério, anunciou:
            – Pois de agora em diante ninguém mais compra droga nessa favela!
            A notícia espalhou-se não apenas pelo morro como por toda a cidade. Se a Polícia e as Forças Armadas nada podiam fazer, a população civil faria: nada de comprar droga.
            Entre os traficantes, a notícia foi uma bomba. Então estavam brigando por quê? Pontos-de-droga sem compradores? O tiroteio cessou imediatamente. O inimigo agora era outro, e poderoso. Os invasores regressaram às respectivas favelas. Zeca Pedalão e Miguelão Boia Fria fizeram as pazes, Zenilde trancada a cadeado em seu quartinho sem janela. A questão era de sobrevivência!
            A sociedade civil manteve-se firme, bem verdade que alguns ainda consumiam o pequeno estoque que restava em casa. Ninguém comprava um pacotinho sequer.
            As Forças Armadas então se prontificaram a fazer o patrulhamento de alguns pontos da cidade. A Polícia aos poucos voltou às ruas, a cercar pivetes em pontos turísticos. A vida só não voltava ao normal para os traficantes, pés e mãos atados, os fregueses sumidos – os riquinhos da Zona Chique.
            Até que um certo dia...