terça-feira, 30 de julho de 2019

O encontro - Parte I


André e Suzete não se viam desde os tempos em que ela frequentava a oficina de escrita coordenada por ele e destinada a um grupo de psicanalistas em formação, ela, cabeleireira, convidada especial. Depois de tantos anos, se encontraram na cidade de ***.
            Para aqueles que não se lembram, eles se conheceram em um salão de beleza, onde André fora cortar cabelo em momento delicado de sua vida. Lá estava Suzete, que só cortava cabelo de homem, embora trabalhasse em salão feminino. O episódio está belamente relatado em Folhetim
http://loucoporcachorros.blogspot.com/search/label/Folhetim.
            Ambos gostam de literatura, adoram escrever cartas, gênero fora de moda, diga-se de passagem; a correspondência entre ambos prosperou, já são perto de 40 cartas, e a amizade também. De repente surgiu o desejo de se encontrarem, de falar um ao outro, de ouvir a voz do outro, de calar e apenas ouvir, de rir, até de chorar se fosse o caso. Daí o tão esperado encontro, tanta coisa para conversar.
            Abraçaram-se longamente na pequena rodoviária da cidade, trocaram palavras de carinho mútuo e saudade, hospedaram-se em modesto hotel na serra da Mantiqueira, em quartos separados. Jantaram no próprio hotel, beberam uma garrafa de vinho tinto de qualidade mediana, conversaram até tarde. 
            – Bom dia, Suzete! Dormiu bem?
            – Como uma santa, André. E você?
            – Acordei apenas uma vez durante a noite, espantado com o que acabava de sonhar. Antes de dormir, peguei a ler o Amós Oz, livrinho gostoso com o título Do que é feita a maçã, uma conversa com a editora Shira Hadad. Vou ler para você o trechinho que me interessou:

“Quando foram publicadas minhas primeiras histórias, há mais de cinquenta anos, fui até a secretaria do kibutz e disse: peço um dia por semana para escrever. Irrompeu ali uma discussão muito grande e muito dura. Não foi uma discussão entre pessoas ruins e pessoas boas, ou entre pessoas esclarecidas e pessoas obtusas. Os que se opuseram ao meu pedido tinham dois argumentos: um, todo mundo pode dizer que é artista. E quem vai ordenhar as vacas? Um vai querer fotografar, outra vai querer dançar, outro mais vai querer esculpir, e outra mais vai querer fazer filmes de cinema, e quem vai ordenhar as vacas?”
            
            – Suzete, adorei a pergunta “quem vai ordenhar as vacas?”
            – Também gostei, André. Quando uma menina começar a fazer corpo-mole no salão, agora vou logo dizendo, E quem vai ordenhar as vacas?
            A paixão de ambos pela literatura fez com que ela surgisse logo no café da manhã. Começou bem, com Amós Oz.
            – Suzete, você não sabe o mais interessante da história.
            – Me conte.
            – Dormi com o livro do Amós nas mãos, e sonhei com ele. Sonhei que ele estava deitado em uma cama muito simples, dessas de hospital, encostada na parede. Embora doente, mostrava largo sorriso, alegre, amável, gentil para comigo. Ajudei-o a vestir uma blusa de lã vermelha, ele sentado na cama. Acordei feliz, Suzete. Fechei o livro e voltei a dormir.
            – Que sonho lindo, André. A blusa era vermelha!
            – Isso mesmo, havia cor no sonho, havia vida no sonho. Sinto profundo afeto por Amós Oz, e vou lamentar sempre que ele não tivesse ganhado o Nobel.
            Terminado o café da manhã tomaram um taxi e foram conhecer o belo parque no limite da cidade, no alto da serra, com linda vista para todo o Vale do Paraíba. A impressionante cachoeira com o tradicional nome Véu de noiva não podia faltar.
            Suzete contou algumas novidades sobre seu novo salão – agora era proprietária –, falou das dificuldades em lidar com empregados, do aperto financeiro; mantinha, é claro, o hábito de só cortar cabelo de homem. André ouvia tudo com muita atenção. 
Demorou pouco e a conversa recaiu sobre a escrita. Suzete reclamou da dificuldade para melhorar a própria escrita.
– Sabe, André, não posso mais continuar copiando seu estilo, que gosto muito, mas é o seu estilo. Preciso adquirir o meu próprio estilo, e isso é difícil pra caramba. Meu sonho era publicar um livrinho com histórias acontecidas no salão de beleza. O que você acha? Muita pretensão para uma cabeleireira?
– Acho ótima ideia! O fato de ser cabeleireira conta a seu favor, Suzete, as experiências são suas e ninguém melhor para relatar elas. Sossegue, ajudo você na empreitada. Se tem o desejo, é o que basta: escrever é preciso. Faça como o nosso Amós Oz, peça um dia para escrever!

Fim da Parte I