Dois livros me acompanham ao longo da vida – perdi a conta
do número de releituras –, e o desejo de relê-los permanece vivo, fontes inesgotáveis
para a tentativa sempre incompleta de conhecimento da alma humana. A cada
releitura um novo aspecto se revela. São eles Édipo Rei, de Sófocles, e Hamlet,
de Shakespeare.
Quando
da publicação de Hamlet – poema ilimitado,
de Harold Bloom (Objetiva, 2004), autor do Cânone Ocidental e especialista em
Shakespeare, nasceu-me a esperança de que pudesse lançar alguma luz naquele que
considero um dos trechos mais significativos e importantes da literatura
universal:
Hamlet:
Ser ou não ser, essa é que
é a questão:
Será
mais nobre suportar na mente
As
flechadas da trágica fortuna,
Ou tomar armas contra um
mar de escolhos
E, enfrentando-os, vencer?
Morrer – dormir,
Nada mais; e dizer que pelo
sono
Findam-se as dores, como os
mil abalos
Inerentes à carne – é a
conclusão
Que devemos buscar. Morrer
– dormir;
Dormir, talvez sonhar – eis
o problema:
Pois os sonhos que vierem
nesse sono
De morte, uma vez livres
deste invólucro
Mortal, fazem cismar. Esse
é o motivo
Que prolonga a desdita
desta vida.
(Tradução de José
Roberto O`Shea)
Bloom
pouco ou nada acrescenta sobre esta magnífica passagem: “Temos aqui duas
grandes metáforas em conflito: a libertação com respeito ao corpo (invólucro
mortal), tudo o que haveremos de perder, e o país ignorado, o reino da morte,
de onde nunca ninguém voltou, mas de onde o espectro do Rei Hamlet escapa duas
vezes durante a peça.”
No
entanto, o capítulo intitulado Com
Shakespeare, escrito por J.-B. Pontalis, no livro Freud com os escritores, deste mesmo autor e Eduardo Gómez Mango
(Três Estrelas, 2013), é riquíssimo em novas interpretações. O livro destaca a
influência de autores como o próprio Shakespeare, Goethe, Schiller, Hoffmann,
Heine, Dostoiévski, Schnitzler, Romain Rolland, Thomas Mann, Stefan Zweig,
Émile Zola, sobre o pensamento freudiano.
Voltemos
a Hamlet, na interpretação de Pontalis, que afirma:
“Hamlet
é um herói mais trágico do que Édipo (lembremos o título: A tragédia de Hamlet), pois a tragédia se consuma na cena interior:
a discórdia, o dilaceramento, a incoerência,
tão manifestos em suas réplicas, estão dentro dele. Duas forças
antagônicas de igual potência lutam sem trégua nesse palco interior: agir ou
não agir, vingar o assassinato do pai, tornando-se por sua vez assassino, ou
ele mesmo morrer, to be or not to be.
Do início ao fim, da aparição do espectro até sua própria morte, ele é
perseguido pelo sofrimento. Hamlet é o homem do sofrimento. Seu ato de vingança
permanecerá, qual uma carta que não chega ao destinatário, sempre “a caminho””.
E
Pontalis arremata:
“Ora,
o que caracteriza Hamlet é um conflito não resolvido que está na origem de sua
inibição. Vejamos nele um neurótico que, como muitos de nós, não consegue se
separar de seus primeiros objetos de amor e ódio. Ele, porém, desconhece o
fato. Isso se chama recalcamento, e é uma tentativa vã, pois, felizmente, o
recalcado retorna...”
Em
Freud com os escritores, Mango
termina o excelente prefácio com uma observação importante: “Freud teve a
coragem de introduzir no espaço do saber científico a figura do Dichter, do poeta, severamente apartado
pela academia de sua época. Fez do poeta um dos interlocutores primordiais de
sua obra. Reconhecia na Dichtung [criação
literária] um acesso privilegiado à verdade psíquica”.
É
preciso mais para que nos dediquemos com afinco à Literatura?