quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Conto de Natal ou o quinto filho


O pai, homem letrado, amante da boa literatura, 25 dias antes do Natal reuniu os cinco filhos e, cheio de entusiasmo, lançou o desafio, Quero que cada um de vocês escreva um Conto de Natal, e o vencedor do torneio ganhará como prêmio as Obras Completas de Machado de Assis.
A verdade é que o pai sonhava com um filho escritor, Pelo menos um, pensava ele, e os estimulava a todo momento, desde pequenos, dando de presente livros e mais livros, ele mesmo possuidor de uma bela biblioteca. Na mocidade havia escrito algumas peças de teatro, para que fossem representadas pelo Grupo da Juventude Cristã, repletas de ensinamentos morais, de normas do bem viver, religioso que era, um crente fervoroso. Também arriscara um e outro conto, nunca publicados. Estava claro que pretendia realizar-se através dos filhos.
O mais velho acabara de completar 18 anos, pensava em ser médico, e embora apreciasse a leitura, não tinha vocação para escritor. Mesmo assim, por amor ao pai, sabedor da paixão que movia aquele inesperado torneio, aceitou o desafio e pôs-se a ruminar uma história edificante.
O segundo filho, nos seus 17 anos, queria ser engenheiro; desde pequenino brincava de construir estradinhas na areia, por onde passavam caminhões carregados de pedras e tijolos, com o que ele levantava magníficos castelos. Por influência do ótimo professor de português do colégio, mais do que por influência paterna, também era um bom leitor. Precoce em suas escolhas, lia Dostoievski compulsivamente, o que chegava a preocupar a piedosa mãe. Aceitou prontamente o desafio do pai.
O terceiro filho, com 16 anos já era um poeta! Você vive no mundo da lua, meu filho, não cansava de repetir a mãe, A vida não é moleza não, você precisa ter uma profissão que lhe dê sustento e à sua família, siga o exemplo de seus irmãos mais velhos, esqueça esta conversa boba do seu pai, escritor morre à míngua, não tem futuro, ao menos vá estudar inglês, poderá tornar-se professor de inglês, que já é em si uma profissão rentável. Interminável ladainha de que se aproveitava a mãe e que sobrava para os dois, pai e filho. O menino era mesmo apreciador da poesia, Manoel de Barros o poeta preferido, e quando pediam que ele declamasse um poema, era sempre o mesmo, “Ovo de lobisomem não tem gema”, e ria do espanto que provocava nos ouvintes. A despeito deste gosto, nunca lhe passou pela cabeça ser um escritor; talvez professor de português, o que não confessava à mãe, com medo de uma surra.
O quarto filho, que acabara de completar 15 anos – era uma escadinha, aquela filharada – ainda não sabia o que gostaria de fazer da vida. Era bom de bola, cabeça-de-área no time da escola, talvez pudesse profissionalizar-se, tinha ótima compleição física, era alto, espadaúdo, ágil, inteligente. Seja pelo tal professor de português, seja pelo pai, seja lá pelo que for, era uma surpresa que também gostasse de ler, lia tudo que lhe caia nas mãos, desde Machado e Eça até Paulo Coelho e quadrinhos. Daí a tornar-se escritor, era um longo e improvável caminho a percorrer.
Prepare-se o leitor, que agora vem a bomba: o quinto filho é uma menina! Nasceu contra a vontade da mãe, por insistência do pai, que-queria-porque-queria uma menina, para fechar com graça e meiguice a tal escadinha, ela agora em seus magníficos 14 aninhos. Como defini-la para o leitor, já impaciente com tão vasta prole? Maria é da-pá-virada, do-fogãozinho-encerado, apronta-poucas-e-boas, não-tem-papas-na-língua, todos estes clichês são insuficientes para descrevê-la. Inteligentíssima, linda de rosto e de corpo – os peitinhos enlouquecem os colegas da escola, para desespero da mãe – Maria deseja apenas experimentar a vida, no início de uma adolescência sempre difícil mas que promete muito. O que ela tem de comum com os irmãos? Difícil de acreditar, mas é verdade: o gosto pela leitura! Autor predileto? Jack Kerouac, e ela adora dizer que seu livro preferido é On the road, assim mesmo, em inglês, pois, pasmem todos, leu-o no original. Por isso ouviu com atenção a proposta do pai, pensou por alguns minutos, e aceitou-a com surpreendente entusiasmo.
No dia 25 de dezembro, depois de um caprichado almoço onde foi servida leitoa assada com farofa de ovos, regada a um bom tinto, a família toda reunida, o pai abriu cada um dos envelopes lacrados entregues naquela manhã, e iniciou a leitura dos Contos de Natal, em ordem cronológica, respeitando a idade de cada filho.
O primogênito discorreu sobre a Família. Escreveu com correção, esmero, cuidado e delicadeza sobre a importância do Natal como símbolo da preservação da família, pródigo em ensinamentos de ordem moral e religiosa. Saiu ao pai, diziam todos. Aplaudidíssimo ao final da leitura.
O futuro engenheiro escolheu como tema central as péssimas condições materiais em que Jesus veio ao mundo e o Sofrimento que isso acarretou a toda a Sagrada Família, desde o nascimento até a morte de Jesus. Culpa dos romanos, capazes de construir um Coliseu que ofertasse circo, sem qualquer preocupação com o pão dos mais desfavorecidos. Terminou seu escrito dando graças pelo conforto em que ora viviam, agradecendo aos pais por tudo que até agora lhes proporcionaram, sem se esquecer da boa educação que recebiam.
Bem, o poeta iniciou seu conto com a frase “Ovo de lobisomem não tem gema”, para gargalhada geral! Porém, é inegável que desenvolveu o tema de forma originalíssima, escrevendo sobre o que chamou de o Mistério do Nascimento de Cristo. O texto tinha a forma de um poema de versos livres, e aqui e ali notava-se a influência do poeta pantaneiro. Como os dois irmãos que o antecederam, também foi muito aplaudido.
O nosso futuro craque surpreendeu a todos com uma história singela, bem contada, dos meninos que nascem paupérrimos e vivem os primeiros anos de suas vidas literalmente nas ruas – este o paralelo que fazia com a infância de Jesus Cristo – até que encontram uma escolinha de futebol que lhes oferece a primeira grande oportunidade de sucesso na vida. Pai e mãe não se entusiasmaram muito, mas o dia era de festa e o melhor a fazer era bater palmas.
Por fim, o conto da caçula. Eis, na íntegra, o conto de Maria:

"José e Maria já possuíam quatro filhos, todos homens, quando por insistência do pai resolveram ter mais um filho, na esperança de que viesse uma menina, quer dizer, José resolveu, Maria calou-se, como se calava sempre, naquele tempo mulher não palpitava nunca, muito menos nessas questões misteriosas e delicadas como a quantidade de filhos de um casal, onde comiam dois, comiam cinco, seis, sete, a trabalheira era a mesma, mas acontece que quando os quatro filhos homens perceberam que a barriga de Maria dava sinais evidentes de gravidez, e que José desejava ardentemente uma filha mulher, revoltaram-se, protestaram aos brados como nunca os pais tinham visto, não desejavam de forma alguma a intrometida de uma irmã para lhes roubar o pouco que recebiam, certos de que ela não poderia ajudar na carpintaria do pai exatamente por ser mulher, enfim, um estorvo, isso é que era, um grande estorvo uma irmã a mais, e a discórdia foi semeada naquela casa, as discussões chegaram aos ouvidos da vizinhança, a notícia espalhou-se pelo povoado, agora era o povo a dar palpites, os pais transtornados com tamanho barulho, os quatro irmãos irredutíveis, turrões, egoístas, fazendo todo tipo de ameaça, até em morte falavam, e foi então que Maria, assustadíssima, teve a iluminação! – o que muitos séculos depois passou a ser considerada por muitos como obra e graça do Espírito Santo – Maria inconformada com o rumo do desarranjo familiar, saiu-se com a história de que o filho fora gerado por um Anjo, que José já não dava mais no couro, e houve quem dissesse que aquela era uma vingançazinha dela, que não queria mais filho algum, muito menos uma menina, um trastezinho a lhe puxar o rabo da saia casa afora, mas a história do Anjo pegou que nem chiclete, espalhou-se como pólvora por todas as gentes, não que José tivesse gostado, não gostou, ele sabia que o filho era dele, besteira aquilo de Anjo, onde já se viu?,  foi o único que não gostou da história, porém aquela era a vez dele permanecer calado, por conveniência pacificadora, e os quatro irmãos resolveram calar-se também diante do misterioso Anjo, vá lá que viesse dali algum prodígio qualquer, uma menina fada ou bruxa, tanto faz, na época era tudo a mesma coisa pois já havia a suspeita de que mulher tinha mesmo pacto com o Demo, assim diziam, mas enfim, acalmou-se a família, acalmaram-se os vizinhos, e surgiu em lugar das desavenças uma enorme expectativa silenciosa, cheia de mistério, aguçada quando a família fugiu com medo das ordens de Herodes, e se fosse um bebê homem?, corria o boato que estava para nascer o futuro Rei da Galileia, o que se encaixava perfeitamente com a história do Anjo contada por Maria!, e foi assim que nasceu o menino Jesus."

Isso mesmo, súbito e inesperado como um raio em céu azul, termina o Conto de Natal de Maria. O silêncio inunda a sala, não há aplausos, risos não há, o pai e a mãe boquiabertos, mudos, até que Raimunda, a cozinheira que ainda não havia entrado na história e que ouviu tudo atrás da porta, gritou lá de dentro, para alívio geral, Hora do cafezinho com torta de maçã!

flor-do-cerrado


cercada de mato
ao pé da cerca floresce
roxa e solitária 

Foto: A.Vianna, jan. 2014, Brasília