terça-feira, 31 de julho de 2018

Retrato de Vincent van Gogh

Meus quadros favoritos


Henri de Toulouse-Lautrec

Escravidão negada


Representação de Mercado de Escravos


Um certo candidato à presidência da república, ao ser indagado em programa de televisão a respeito das cotas para negros, afirmou ser contrário a elas. Ele acredita no mérito das pessoas, e não em privilégios.
            Até aí, tudo bem. O assunto é mesmo polêmico; há os que são a favor e os que são contra as cotas para negros nas universidades. Eu mesmo tive muita dúvida, até firmar opinião a favor das cotas, mesmo assim reconhecendo as dificuldades e inconvenientes do processo.
            Discutir prós e contras é a maneira inteligente e civilizada de abordar a questão. Em vez de buscar tal caminho, o citado candidato resolve entornar de vez o caldo, radicalizar para valer, com esta antológica afirmação:

"...se for ver a história realmente, os portugueses nem pisavam na África, eram os próprios negros que entregavam os escravos". 

            Ou seja, o homem negou a existência da escravatura em nossa História! Logo agora em que o país faz um grande esforço para rever este período que tanto nos envergonha, perante nós mesmos e o mundo, ele declara que a responsabilidade é dos próprios negros.
            Penso que isso é muito grave. 
            Um candidato à presidência que desconhece fatos elementares de nossa História não pode estar habilitado a conhecer o presente e enfrentar os problemas atuais. Para isso serve a História.
            A total falta de sensibilidade para tratar um tema difícil é outro aspecto que chama atenção. Se olharmos a nossa volta, vamos ver que a escravidão ainda não terminou. A desigualdade social, especialmente aquela em desfavor do negro, é gritante, resultado de um passado que ainda não se resolveu. 
            Estimular e favorecer a educação me parece a melhor alternativa para mudar tal condição, mas se ela é negada de antemão, onde buscar a solução?
            Há outra resposta do candidato que merece um último comentário. Quando ele se declarou contrário à política de cotas, foi indagado se esta não seria uma “resposta à dívida histórica do Brasil para com os afrodescendentes”, em consequência do período de escravidão. Ao que ele respondeu:

“Que dívida? Eu nunca escravizei ninguém na minha vida?”

            Agora chegamos ao nível do absurdo! O candidato confunde a “dívida histórica do país” com algo pessoal, como se ele fosse maior que o próprio país. O narcisismo patológico torna-se evidente: “eu nunca escravizei ninguém”. A resposta é de uma infantilidade monumental.
            Hannah Arendt, em seu famoso livro Eichmann em Jerusalém, denuncia o trabalho dos próprios judeus nos campos de concentração nazistas (fatos mostrados cruamente no filme O filho de Saul). Nem por isso ela deixa de reconhecer o Holocausto.
            Este blogueiro muito raramente publica textos sobre política partidária ou posições deste ou daquele político. A mídia está repleta deles, e nada tenho a acrescentar. Porém, não posso permanecer em silêncio diante de tamanho descalabro, como o desta entrevista de um certo candidato à presidência da república.

Noite estrelada

Meus quadros favoritos


Edvard Munch

segunda-feira, 30 de julho de 2018

Poema no. 5: homenagem a Hilda Hilst

Nesta quarta-feira, 25, teve início a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip).  EL PAÍS publica o último poema da corrente lírica Hilda Hilst, homenageada do evento literário. “Indicada pela curadora da Flip, Joselia Aguiar, Josely Vianna Baptistacomeçou a corrente que passou para Antonio RisérioRicardo AleixoEliane Marques e agora fecha com Ronald Augusto. O poema selecionado, a voz do morro, faz parte do livro no assoalho duro (2007), publicado originalmente pela editora Ébilis, mas que já tem uma publicação ampliada pela Bestiário. Além de poeta, o escritor gaúcho também é músico, editor e crítico literário.”

a voz do morro

rasgacéu e mausoléu de nuvens
lá vai o morro: visto que parece meio
sem jeito mas paira quando nada
um passo perene e ainda outro
sobre a cerviz viridente quase
escura dele quando toda essa brancura
em desmesura escarnece
demora-se romeira um debruar-se
opressivo de bruços

em fila gigantas velhuscas
monjas lontanas nesta variedade
de formatura solar
mancheias de velofinos grisalhos
em carícias contra o verde crestado
a cabeleira cabocla desfeita
sobre a testa do morro que se
acrioula achando a coisa toda
sem serventia e nem unzinho
cachorro latia e vaca nenhuma
mu

“Ronald Augusto, nascido em 1961, em Rio Grande, cidade litorânea ao sul de Porto Alegre. Augusto é uma das referências da publicação de poesia contemporânea hoje no Rio Grande do Sul, autor de mais de uma dezena de obras como Homem ao Rubro, Confissões Aplicadas e Cair de Costas. Estudioso da poesia negra no país, esteve ligado à poesia marginal durante a ditadura militar e hoje, além de poeta, é músico, letrista, editor e crítico literário. De 2009 a 2013 foi editor associado do site Sibila. É colunista do site Sul 21.”


Casa de presuntos

A foto do dia


Visita a uma casa de presuntos em Lisboa


Foto: Paulo Sergio Viana, jul 2018.

terça-feira, 24 de julho de 2018

Abelha e flor

fotominimalismo




Foto: AVianna, jun 2018

Lovers in the red sky

Meus quadros favoritos


Marc Chagall

Dahmer

Charge do dia


André Dahmer

Foto com iPhone, Grande prêmio 2018



iPhone Photography Awards 2018.

Grande Prêmio, Fotógrafo do Ano: JASHIM SALAM (IPPAWARDS)



Um grupo de rohingyas assiste a um filme sobre a importância da saúde e da higiene perto do campo de refugiados Tangkhali em Ukhiya (Bangladesh).

Para ver as outras premiadas clique aqui:

Desolação

Décima edição do iPhone Photography Awards 2017.

Grande Prêmio, Fotógrafo do Ano: Sebastiano Tomada.



Niños de Qayyarah

Para ver outras fotos premiadas clique aqui:



segunda-feira, 23 de julho de 2018

Tristeza, depressão e música

Da série
Mais 47 cenas de um romance familiar


– Gosta de música?
– Adoro!
– E por que não ouve?
– Tornou-se um tormento.
– Um concerto para piano de Beethoven...
– Martelação infernal.
– A tranquilidade de Couperin?
– Barulho barulho barulho.
– Então os Noturnos de Chopin.
– Só a vontade de chorar.
            
            No início da adolescência, foi nossa mãe quem nos apresentou a música erudita, a mim e meu irmão. Colocava o vinil na vitrola (era assim que se chamava o equipamento de som naquela época) e enquanto ouvia, comentava sobre a vida do compositor, sobre a escola musical a que pertencia, destacava os trechos de que mais gostava, fazia crítica bastante adequada à música.
            Sua fonte de informação era a Rádio MEC, da qual era assídua ouvinte. Possuía ótima memória, e o que ouvia, tratava de reproduzir aos filhos, nem tão disciplinados como a mãe.
            Gostava de Bach, Vivaldi, Mozart, mas por Beethoven o que sentia era mesmo uma espécie de veneração quase religiosa. Adorava Chopin, Brahms, Ravel (foi com ela que aprendi a ouvir para o resto da vida as Valsas Nobres e Sentimentais), Debussy (Clair de lune a preferida!). Apreciava Petrushka e a Sagração da Primavera, de Stravinsky, e parava por aí, nada de Shostakovich e outros russos.
– Aprecio muito Villa-Lobos, mas não suporto os quartetos para cordas dele, aliás, nem dos quartetos de Beethoven eu gosto, afirmava ela categórica (como sempre). Ela mesma impunha-se a limitação, manifestação de rigidez psíquica.
Seu gosto para música era clássico, e pronto. Às vezes tecia comentários como se fossem dela mesma e que me despertavam a dúvida, Onde será que ouviu isso? Dizia que Chopin era ótimo compositor para piano, mas que os dois Concertos para Piano e Orquestra dele pecavam pela pobre orquestração. Seria dela mesma observação tão sutil?
Isso antes da doença.
Depois da depressão, na tentativa de animá-la, eu perguntava Por que a senhora não ouve mais música, gosta tanto!
A resposta era sempre a mesma:
– Não consigo, não consigo, um tormento. 
Assim é que, se quisermos saber se uma pessoa está apenas triste, ou está doente, com depressão, basta perguntar:
– Tem ouvido música?
            

In-felicidade


O prolífico Drauzio Varella, por quem nutro grande admiração, quase sempre ocupado com temas ligados à saúde e à pesquisa científica, nos surpreende ao escrever sobre a Felicidade, em crônica dominical para a Folha de S. Paulo (22 jul 2018). E escreve em grande estilo:

“Felicidade plena, mesmo, só no conforto protegido do ventre materno. Lá, a sobrevivência está à mercê exclusiva da fisiologia, não há encruzilhadas, armadilhas nem espaço para dúvidas que nos levem à angústia das escolhas.
A plenitude chega ao fim em nove meses. Os religiosos que me perdoem, mas o paraíso com serpentes e frutos proibidos do qual Adão e Eva foram expulsos por graça do pecado original é um mundo inóspito se comparado aos ditames da vida intrauterina.
Para destruir a convivência idílica com o organismo materno, são necessárias contrações uterinas tão brutais que chegamos à luz aos berros, prenúncio do que está por vir.”

            É possível que haja felicidade na vida pré-natal. Entretanto, serão tão primitivos os sentimentos vividos pelo feto que dificilmente poderíamos compará-los àquilo que denominamos felicidade diante do mundo real. A própria consciência (parece que está mesmo presente intra-útero) há de ser primitiva, ainda em formação, em paralelo ao desenvolvimento do sistema nervoso central. Assim, penso que a “felicidade plena” no ventre materno de que fala Varella é muito mais uma romântica figura de linguagem, bem longe da realidade. Se ela existe mesmo, não temos consciência dela depois que nascemos. 
            Porém, a “destruição da convivência idílica” de que trata o cronista, no momento do parto – súbita brusca violenta separação – esta existe mesmo, trauma que fica para sempre, momento de intensa in-felicidade. Se não é a única responsável por nossa eterna busca, esta brutal separação, como diz Varella, contribui em muito para a chamada “angústia existencial” de que tanto se fala. Prefiro chamá-la apenas de FALTA, uma falta que permanece por toda a vida, sem que saibamos (ou tenhamos plena consciência) do que sentimos falta! 
            Sentir plenamente a falta – em vez de negá-la –, aprender a sofrer a dor da falta, ter consciência dela, pode nos ajudar a suportá-la. (O processo psicanalítico nos ajuda a tornar consciente aquilo que é inconsciente.)
            Nada disso nos impede de usufruir de momentos de felicidade, como o nascimento de um filho, de um neto, uma viagem interessante, a audição da Nona de Beethoven, visitar um belo museu, vencer a Copa do Mundo, vibrar com um gol de nosso time preferido. (Inútil classificar os momentos de felicidade em ordem de grandeza ou intensidade: o que conta é o que sentimos naquele determinado momento.)
            A vida é mesmo feita de perdas, a começar pelo nascimento. Reconhecer os momentos de felicidade e vivenciá-los da melhor forma possível, eis a arte de sobreviver.
            Até que nada disso faça mais sentido, quando a vida perde a graça e perdemos a vontade de viver. Alongar, com o passar dos anos, por um bom tempo, o aparecimento deste estado de espírito, então talvez seja possível continuar pensando em felicidade.







sábado, 21 de julho de 2018

Memórias coloniais



Pouca gente até agora ouviu falar de Isabela Figueiredo, nascida em Lourenço Marques, hoje Maputo, Moçambique, residente em Portugal desde 1975, onde é professora e escritora. Seu segundo livro, Caderno de memórias coloniais (Ed. Todavia, 2018), publicado em Portugal em 2006, há de torná-la conhecida também no Brasil. 
            O passado colonial de Portugal é tratado pela autora na primeira pessoa, cruamente, onde brancos são brancos e pretos, pretos. A luta íntima contra o pai amado e racista e bruto talvez tenha sido exorcizada pela autora, através de relato de tamanha sinceridade. Talvez.
            A par do conteúdo interessantíssimo, de enorme valor histórico, o livro nos oferece estilo forte, duro, por vezes áspero, porém original e elegante. Eis pequena amostra:

“Nunca tinha batido em ninguém, mas dei-lhe uma bofetada, porque ela me irritou, porque não concordou comigo, porque eu é que sabia e que mandava e estava certa, porque ela tinha dito uma mentira, porque me tinha roubado uma borracha, sei lá por que lhe dei a maldita bofetada!
Mas dei-lha, na Escola Especial, no intervalo da manhã, encostada aos fundos da sala da 4aclasse. Uma parede branca. Era a Marília.
Foi premeditado. Tinha pensado antes, se ela voltar a me irritar, bato-lhe. Podia perfeita e impunemente bater-lhe. Era mulata. E a rapariga comeu e continuou em pé, sem se mexer, com a mão na cara, sem nada dizer, fitando-me com um estranho olhar magoado, sem um gesto de retaliação. Disse-lhe, já levaste, e depois afastei-me para o fundo do pátio, absolutamente consciente da infâmia que tinha cometido, esse exercício de poder que não compreendia, e com que não concordava. Não por ser uma bofetada, mas porque tinha sido à Marília. A Marília era um alvo fraco. Nada podia contra mim. Queixasse-se, e depois?! Eu era branca. Quem poderia cantar vitória logo à partida?”

            O racismo português à flor da pele, as mágoas do colonialismo. Vale a pena conferir! 
            

sexta-feira, 20 de julho de 2018

Coisas que a gente não deve contar

Da série
Mais 47 cenas de um romance familiar



Há coisas que a gente não devia contar a ninguém. Coisas das quais nos envergonhamos tanto que são quase impensáveis, quanto mais compartilhadas. Porém, permanecem caprichosamente guardadas em nossa memória, passa o tempo e não se apagam. Até que em um belo dia resolvemos nos ver livre daquela pedrinha no sapato, que os gregos chamavam sabiamente de “escrúpulo”.
            Vamos à história, que começa com o sítio de nosso avô Breno, onde íamos todas as manhãs de domingo, o avô, nosso pai, meu irmão e eu, para ataques desesperos reclamações esbravejamentos de minha mãe que permanecia sozinha em casa todas as manhãs de domingo. Dizia que não gostava de roça. (Mas gostava de reclamar.)
             O avô era pessoa especial, talvez a melhor cabeça de toda a família, passada e presente, verdadeiro intelectual, professor de economia com livros publicados, porém no sítio dele não era capaz de nos dispensar a menor atenção, às voltas com o gado, a plantação, as galinhas, as formigas saúvas. Lembro-me dele e sua azáfama com aquele pequeno pedaço de chão, mais trabalho que prazer. Mas ele gostava de dizer que o comprara para agradar minha avó Ceci, a mulher a quem tanto amava. (Há coisas que a gente precisa contar.)
            Acordávamos bem cedo, os adultos na cabine da caminhonete, as crianças na caçamba – nada da superproteção tão em voga hoje em dia, os meninos que se segurassem –, estrada de terra poeirenta esburacada, Pé na tábua, gritava nosso pai animado. Abrir a porteira do sítio era a primeira façanha; mais alguns metros e estávamos na sede, casa-de-roça muito simples, varanda, sala, dois quartos, cozinha, banheiro, cômodos todos pequenos, uma pinturinha azul desbotada nas portas e janelas. 
O mais importante é que à frente da varanda havia um pequeno gramado, nosso campo de futebol, meu pai meu irmão e eu formávamos o time, todos a favor de todos. (Marcante episódio para o menino, foi quando em meio a uma jogada mais brusca meu pai não aguentou correr, parou, língua de fora, cansado mesmo, e então pensei Ele está ficando velho. De fato ele era moço, viveu muito ainda. O medo era meu.)
Quando a fome apertava havia o leite tirado na hora, do qual não gostávamos muito porque era quente espumoso. Mas o pai levava de lanche pão e banana para cada um. Certa feita o irmão inconformado perguntou, Não tem manteiga?, Come esse pão aí e não enche, menino, foi a resposta do pai, acompanhada de uma gostosa afetuosa risada.
Bem próximo à casa passava um corregozinho, água limpíssima e fria, leito de areia e pedras, piscina praia mar oceano para alegria dos meninos que se banhavam pelados.
Há coisas que a gente não devia contar. 
Em uma de nossas idas ao sítio o pai apareceu com espingarda calibre 22, marca famosa, culatra de madeira lustrosa, mira inigualável de tão calibrada, e uma caixa de balas de verdade. Próximo ao curral havia um pequeno açude, ladeado por elevação, onde colocávamos as latas e garrafas para o tiro ao alvo. Postávamo-nos do outro lado do açude, a uma boa distância, para o excitante impensável indizível prazer do tiro ao alvo com espingarda e balas de verdade.
Até que certo dia, já na varanda da casa, avistei belo pássaro de penas marrons, grande em comparação a pardais e cambaxirras, empoleirado sossegado em galho de arbusto não muito distante. Pedi a espingarda ao meu pai e ele ma deu. Foi um tiro só, certeiro, tombou o pássaro diante da descomunal violência para com sua natureza tão frágil, vi-o cair ao chão e ali permanecer inerte.
A confusão de sentimentos que se seguiu àquele ato insano permanece mais viva do que nunca. Por que? Para que? E agora? Mas está feito!
Há coisas que a gente não deve mesmo contar. Não havia culpa. Naquela época menino matava passarinho. Porém, após o tiro certeiro, nunca foi tão forte o sentimento de que aquilo era errado e que jamais deveria se repetir. Dos males, o menor.

O quarto poema

EL PAÍS publica o quarto poema da corrente lírica Hilda Hilst, poeta homenageada no evento literário. Indicada pela curadora da Flip, Joselia Aguiar, Josely Vianna Baptista começou a corrente que passou para Antonio RisérioRicardo Aleixo e agora chega na poeta gaúcha Eliane Marques. Sem título, o texto faz parte do livro e se alguém o pano.



resta na medula das coisas
ali onde sobram em conluio
os sapatos

se pudesse fraturá-las
deitá-las sobre a cama

se o crime alguém o intentasse somente com o pranto
mas tem lá o seu cavalo mouro um lenço para as louças
e outro (mais curto) às canecas de estanho

a negrinha dada aos serviços da casa
corpo que se aquieta no tropel dos infantes

corpo a quem se indefere
o bilhete de passagem
um corpo pequeno um corpo estranho

ao seu braço não basta a cabeça de piolhos
esmagá-los como castanha

esse braço dado aos serviços dos outros
tem lá o seu cavalo mouro seu ruído entre os zimbros
tem lá o seu cavalo mouro seu cheiro de crina
contra a força que se impõe às insistências do morto

a negrinha braço da casa
louça partida entre tantos

a negrinha dada aos serviços da casa
tem lá o seu cavalo mouro
eu disse: tem lá o seu cavalo mouro


“Eliane Marques, nascida em 1971, é gaúcha de Sant'Anna do Livramento, e tem formação em Pedagogia e Direito; atua como auditora pública do tribunal de contas do Rio Grande do Sul. De formação ampla, a poeta ainda estuda psicanálise e coordena a Escola de Poesia, vinculada à instituição de psicanálise Après Coup Porto Alegre Psicanálise e Poesia. Hoje em Porto Alegre, Marques ainda edita a revista Ovo da Ema. Seu primeiro livro de poesia, Relicário, foi publicado em 2009. Já e se alguém o pano, de 2015, ganhou o Prêmio Açorianos de Literatura (categoria poesia -2016), organizado pela prefeitura da capital gaúcha.”



quarta-feira, 18 de julho de 2018

Operários

Meus quadros favoritos


Tarsila do Amaral


100 anos de Mandela

A foto do dia


100 anos do nascimento de Nelson Mandela
Uma data para ser comemorada!

Imigração




Leandro Karnal inicia sua crônica de hoje (Imigrar, para O Estado de S. Paulo, 18 Jul 2018) com uma frase interessante: “O Brasil é um mosaico.”
            Não há tema mais atual e mais importante que o problema da imigração, e das levas de desvalidos refugiados mundo afora. As notícias dos africanos que tentam atravessar o Mediterrâneo e morrem afogados – famílias inteiras – estão todos os dias na mídia. São imagens dramáticas, que preferimos não ver. A xenofobia prospera em praticamente todos os continentes.
            As soluções são complexas, naturalmente. Para entender melhor do que se trata, destaco trecho da crônica de Karnal, que toca em pontos fundamentais do fenômeno imigração:

“Ser descendente de imigrantes pobres deveria nos tornar muito receptivos aos novos grupos de pessoas em fuga. Especificamente, imigrantes atuais como bolivianos, venezuelanos e haitianos, que repetem o que nossos avós alemães, italianos, japoneses, portugueses e espanhóis fizeram. Nem sempre temos a solidariedade que nossa condição imporia. Pelo contrário, é comum que o imigrante da segunda-feira olhe o da quinta-feira como um invasor arrivista, um perigo. Acontece no Brasil. Acontece nos EUA, onde Trump, descendente de imigrantes alemães e casado com uma imigrante eslovena, aperta o cerco contra “forasteiros”. Sempre me pareceu que, entre a utopia pouco praticável de escancarar fronteiras e a ideia de uma muralha xenofóbica, poderiam existir soluções equilibradas. Temos espaço no território. Talvez tenhamos pouco espaço nos corações. É sempre estranho que um ser humano possa ser ilegal no planeta Terra.”

            Esperemos pelas soluções equilibradas de que fala o cronista.





Chaim Soutine no Jewish Museum de NY


Peixe, pimentas e alhos


Peru dependurado


Carne


Fotos: AVianna, jun 2018, NY.

terça-feira, 17 de julho de 2018

High Line: jardim suspenso em Nova Iorque

A High Line é um ótimo exemplo de revitalização de espaço urbano abandonado e feio. A participação de moradores próximos ao jardim é fundamental para sua manutenção. Um exemplo a ser seguido.  









Fotos: AVianna, jun 2018

A arte da conversação

Meus quadros favoritos



René Magritte

segunda-feira, 16 de julho de 2018

Fotoabstração N.47





Foto: AVianna, jul 2018.

Coqueiro

fotominimalismo





Foto: Paulo Sergio Viana, jul 2018.

Aprender e ensinar


Ruy Castro alerta: “Brasil corre o risco de, em breve, não ter professores para suas crianças.” (Aprender e Ensinar, Folha de S. Paulo, 16.jul.2018).
Apenas 2,4% dos jovens brasileiros pensam em se tornar professores (há 10 anos essa percentagem era de 7,5%.).  
Afirma Ruy Castro: “Os motivos para tal desinteresse são conhecidos. Ser professor, em certas áreas das cidades, equivale hoje à possibilidade de, a qualquer momento, apanhar na cara. Não há respeito por parte da classe. Alunos dominam a sala, ignoram a presença do mestre, passam a aula ao celular e, se forem do ensino privado, sabem que têm imunidades junto à diretoria —esta nunca correrá o risco de perder uma matrícula.  Outros motivos para o desinteresse pela profissão são os baixos salários e a falta de reconhecimento social. O piso fixado pelo MEC para professores que dão 40 horas semanais é de R$ 2.455,35.”
O quadro é desanimador. Perspectiva de melhora é nula a curto e médio prazos. Enquanto isso o país patina na lama da corrupção. 
O cronista encerra com melancólica constatação: “E eu que, inocente, sempre achei que só havia uma coisa mais bonita que aprender — ensinar.”   






sábado, 14 de julho de 2018

Lei Castilho


“Primeiro marco legal sobre formação de leitores no Brasil, Lei Castilho é sancionada.
A nova Política Nacional de Leitura e Escrita (PNLE) faz história ao instituir política de Estado de longo prazo.”

Esta é a espantosa manchete do artigo de Guilherme Sobota, para O Estado de S. Paulo (13 Jul 2018), pois foi sancionado nesta sexta-feira-13, o primeiro marco legal da história do Brasil voltado para a formação de leitores. 
“A Política Nacional de Leitura e Escrita (PNLE), que ficou conhecida como Lei Castilho, foi assinada pelo presidente Michel Temer e publicada no Diário Oficial da União, como Lei n.º 13.696, de 12 de julho de 2018. Fruto de um trabalho de décadas, a Lei é uma “estratégia permanente para promover o livro, a leitura, a escrita, a literatura e as bibliotecas de acesso público no Brasil”. 
Entre as diretrizes da nova legislação, está “o reconhecimento da leitura e da escrita como um direito, a fim de possibilitar a todos, inclusive por meio de políticas de estímulo à leitura, as condições para exercer plenamente a cidadania, para viver uma vida digna e para contribuir com a construção de uma sociedade mais justa”. 
“A Lei deve ser implementada pelos Ministérios da Educação e da Cultura, em conjunto com estados e municípios, e prevê a criação, a cada 10 anos, de um Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL) com metas estabelecidas a partir dos objetivos do novo texto.”
“É o primeiro marco legal”, explica José Castilho Marques Neto, principal formulador do novo texto e líder político no longo processo de diálogo com setores da educação, da cadeia do livro e do governo. “Estamos falando de direito à leitura. É a melhor produção legal no sentido de emancipação cultural das pessoas no Brasil”. 
            
Bom demais para ser verdade?



Manoelito, meu amigo

Da série
Mais 47 cenas de um romance familiar


            Marcelo era colega de ginásio, morávamos a meio quarteirão de distância e jogávamos bola quase que diariamente, mas meu amigo mesmo era o pai dele, Manoelito, de nome Manoel Meirelles Freire, filho de ilustre cidadão de Guaratinguetá, cuja memória permanecia reverenciada pela cidade, Dr. Meirelles, médico de reconhecida dedicação, especialmente aos mais pobres.
            Manoelito possuía fazenda ao pé da serra da Mantiqueira, outrora fazenda de café, o que rendeu proventos suficientes para a construção de um casarão na fazenda e confortável casa na cidade. Passada a fase do café as terras foram ocupadas pela pecuária, o município conhecido como o maior produtor de leite do país.
            Nesse casarão passei um mês de férias, aos 12 anos de idade, completamente desligado de minha família – nem telefone havia –, acolhido pelo amigo Manoelito, sua esposa Dona Isis e o colega Marcelo, e foi lá que sucedeu o extraordinário acontecimento que passo a relatar, tantos anos transcorridos, na esperança de que não me venha trair a memória já enfraquecida. 
Havia também a outra filha do casal, irmã mais nova de Marcelo, de nome Maria Helena, mimada grosseira emburrada, enfim, chatíssima, sempre pronta para uma desfeita. Menino ainda, resolvi enfrentar a fera em troca das aventuras na fazenda.
            Em frente ao casarão havia um belo gramado, ótimo para um bate-bola; a porteira era o gol. Marcelo e eu revezávamos nos chutes, com bola de couro oficial. Bom mesmo eram os passeios a cavalo. Por deferência que nunca pude compreender, cabia-me montar na melhor égua da fazenda, de nome Soda, enorme linda toda branca esperta e mansa, égua marchadora. Aprendi a cavalgar de verdade, colocar o arreio, primeiro o baixeiro, depois a sela, apertar bem a barrigueira – questão de segurança para o cavaleiro –, subindo e descendo a serra, atravessando riachos, saltando valetas, até ficar amigo de Soda, a melhor montaria da fazenda, e que também passou a conhecer o pequeno cavaleiro.
            Manoelito era homem de pouca conversa, o que aprendi a admirar, relação que guardei para toda a vida, e o significado da palavra amizade. Tratava-me com tanto silencioso carinho que despertava ciúmes no filho, meu colega Marcelo (também meus pais sentiam ciúme de minha relação com Manoelito). À noite era preciso passar breu na correia do gerador – a eletricidade da fazenda vinha de roda d’água ligada por uma polia de couro ao gerador –, e lá íamos nós, Manoelito e eu, à parca luz de uma lanterna, em silêncio, é claro, no breu da noite, eu sentindo o calor daquela amizade incomum entre menino e homem bem mais velho, pai do colega, que não se comunicava por palavras, mas se fazia entender perfeitamente através do afeto. Foi a primeira vez que soube mesmo o que era afeto, embora ainda desconhecesse esta palavra. Havia tão somente o sentimento, que bastava.
            As refeições na fazenda marcavam momentos especiais, todos à mesa, Manoelito na cabeceira, comida de fogão-à-lenha, saborosíssima, preparada por Dulce, negra velha praticamente membro da família, os bons modos prevalecendo, todos respeitadores cerimoniosos, eu quase sempre em silêncio. (Os preceitos da boa educação me foram ensinados por minha mãe.)
            Às tantas, Manoelito organizou o que para mim pareceu-me um regalo em minha homenagem: cavalgada até o topo da serra, onde pernoitaríamos na cabana de um velho amigo dele. Foram dois ou três dias de preparativos, os mantimentos, as roupas de frio, cobertores, a tropa organizada por Zé Bento, velho capataz da fazenda e conhecedor de trilhas, escolhidas as melhores montarias, Soda era minha, naturalmente. 
            Zé Bento era uma das atrações da fazenda. Morava num pequeno casebre ao lado do casarão, o interior enegrecido pela fumaça do fogão-à-lenha, queimando por toda uma existência; no minúsculo quarto de dormir uma enxerga de palha e um velho cobertor; dois tocos de madeira que faziam as vezes de cadeiras na cozinha eram os lugares prediletos dos meninos – na brasa do fogão havia sempre milho ou mandioca assados –, atentos às histórias de Zé Bento. 
A excitação do menino na véspera da partida resultou em noite insone, na expectativa da maior aventura até então vivida. E a grande aventura terminou em monumental decepção. O dia amanheceu nublado, a Mantiqueira encoberta por espessas nuvens, o passeio cancelado. Lembro-me bem, não pronunciei uma única palavra, obediente ao vaticínio de Manoelito, Não se pode subir a serra com esse tempo. Estava decretada a palavra final. Naquela época eu já sabia o que era frustração, mas doeu.
            Passaram-se os dias. Maria Helena chatíssima como sempre, coitada, acabou sendo injustamente responsabilizada (internamente) pela estranha decisão que de repente tomei – o extraordinário acontecimento daquelas férias! Eu mesmo mal podia compreender: queria porque queria voltar para casa. Precisava voltar para casa. Faltavam poucos dias para o término das férias, quando todos retornaríamos à cidade, o que fazia de minha atitude algo ainda mais incompreensível. (Não aguento mais essa Maria Helena, ruminava eu.) Mas precisava voltar naquele dia, bati o pé, eu que não era disso, silencioso e obediente, comportadíssimo quase sempre, seguidor dos preceitos de minha mãe.
            Tamanha era minha determinação que Manoelito resolveu me botar no caminhão do leite que passava todas as tardes pela fazenda rumo à cidade. E assim procedeu, para espanto e apreensão de toda a família. (Talvez ele soubesse.)
            Não me lembro em que lugar da cidade me deixou o caminhão do leite. Cheguei à noite em casa, entrei sem tocar a campainha. Estavam todos à mesa, hora do jantar, meu pai, minha mãe, meu irmão Paulo e minha irmã pequena, Maria Helena. Receberam-me quase que em silêncio, sem qualquer manifestação de júbilo, nada de saudade, nenhum abraço. Apenas minha mãe teceu o curto comentário, Eu sabia que você viria para o aniversário de seu pai.
            Eu não sabia, era mesmo aniversário de meu pai. Sentei-me à mesa e comi com minha família. (Nunca falamos sobre o ocorrido; para todos os efeitos, voltei naquele dia porque era aniversário de meu pai.)
Ao final do jantar, outra observação de minha mãe, Nossa, o André mudou de voz!  
Verdade, o silêncio e o afeto de Manoelito deram-me voz de homem. 



Foto tirada 40 anos após o relato acima, quando de minha visita a Guaratinguetá e à fazenda, meu amigo Manoelito já bem idoso, em frente ao casarão.            

sexta-feira, 13 de julho de 2018

Cine-olho

“Na trilha da homenageada da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), a poeta Hilda Hilst, o EL PAÍS entra em sua terceira semana de corrente lírica. Agora, Risério escolhe Cine-Olho, de Ricardo Aleixo. O texto do autor mineiro está no livro A Roda do Mundo, de 1996. Artista múltiplo, Aleixo é conhecido por fazer apresentações intermídia em que mescla som, imagem e leitura. Ao final, há um vídeo do poema apresentado pelo escritor no Itaú Cultural, em São Paulo.”


Cine-olho


Um
menino
não.
Era
mais um
felino,
um
Exu
afelinado
chispando
entre
os
carros
-
um
ponto
riscado
a
laser
na
noite
de
rua
cheia
-
ali
para
os
lados
do
Mercado


Ricardo Aleixo, nascido em 1960, é mineiro de Belo Horizonte. É artista e pesquisador intermídia. Desenvolve projetos que cruzam entrecruzam poesia, música, design sonoro, dança, teatro, vídeo e artes gráficas. Já fez performances em todo o Brasil e em países como Alemanha, Portugal, França, EUA, México, Espanha e Suíça, entre outros. Lançou, pela editora Todavia (2018) a antologia Pesado demais para a ventania, que reúne poemas de todos os títulos que publicou desde 1992, quando estreou com Festim(edição independente).