Da série
Mais 47 cenas de um romance familiar
Marcelo era colega de ginásio, morávamos a meio quarteirão de distância e jogávamos bola quase que diariamente, mas meu amigo mesmo era o pai dele, Manoelito, de nome Manoel Meirelles Freire, filho de ilustre cidadão de Guaratinguetá, cuja memória permanecia reverenciada pela cidade, Dr. Meirelles, médico de reconhecida dedicação, especialmente aos mais pobres.
Manoelito possuía fazenda ao pé da serra da Mantiqueira, outrora fazenda de café, o que rendeu proventos suficientes para a construção de um casarão na fazenda e confortável casa na cidade. Passada a fase do café as terras foram ocupadas pela pecuária, o município conhecido como o maior produtor de leite do país.
Nesse casarão passei um mês de férias, aos 12 anos de idade, completamente desligado de minha família – nem telefone havia –, acolhido pelo amigo Manoelito, sua esposa Dona Isis e o colega Marcelo, e foi lá que sucedeu o extraordinário acontecimento que passo a relatar, tantos anos transcorridos, na esperança de que não me venha trair a memória já enfraquecida.
Havia também a outra filha do casal, irmã mais nova de Marcelo, de nome Maria Helena, mimada grosseira emburrada, enfim, chatíssima, sempre pronta para uma desfeita. Menino ainda, resolvi enfrentar a fera em troca das aventuras na fazenda.
Em frente ao casarão havia um belo gramado, ótimo para um bate-bola; a porteira era o gol. Marcelo e eu revezávamos nos chutes, com bola de couro oficial. Bom mesmo eram os passeios a cavalo. Por deferência que nunca pude compreender, cabia-me montar na melhor égua da fazenda, de nome Soda, enorme linda toda branca esperta e mansa, égua marchadora. Aprendi a cavalgar de verdade, colocar o arreio, primeiro o baixeiro, depois a sela, apertar bem a barrigueira – questão de segurança para o cavaleiro –, subindo e descendo a serra, atravessando riachos, saltando valetas, até ficar amigo de Soda, a melhor montaria da fazenda, e que também passou a conhecer o pequeno cavaleiro.
Manoelito era homem de pouca conversa, o que aprendi a admirar, relação que guardei para toda a vida, e o significado da palavra amizade. Tratava-me com tanto silencioso carinho que despertava ciúmes no filho, meu colega Marcelo (também meus pais sentiam ciúme de minha relação com Manoelito). À noite era preciso passar breu na correia do gerador – a eletricidade da fazenda vinha de roda d’água ligada por uma polia de couro ao gerador –, e lá íamos nós, Manoelito e eu, à parca luz de uma lanterna, em silêncio, é claro, no breu da noite, eu sentindo o calor daquela amizade incomum entre menino e homem bem mais velho, pai do colega, que não se comunicava por palavras, mas se fazia entender perfeitamente através do afeto. Foi a primeira vez que soube mesmo o que era afeto, embora ainda desconhecesse esta palavra. Havia tão somente o sentimento, que bastava.
As refeições na fazenda marcavam momentos especiais, todos à mesa, Manoelito na cabeceira, comida de fogão-à-lenha, saborosíssima, preparada por Dulce, negra velha praticamente membro da família, os bons modos prevalecendo, todos respeitadores cerimoniosos, eu quase sempre em silêncio. (Os preceitos da boa educação me foram ensinados por minha mãe.)
Às tantas, Manoelito organizou o que para mim pareceu-me um regalo em minha homenagem: cavalgada até o topo da serra, onde pernoitaríamos na cabana de um velho amigo dele. Foram dois ou três dias de preparativos, os mantimentos, as roupas de frio, cobertores, a tropa organizada por Zé Bento, velho capataz da fazenda e conhecedor de trilhas, escolhidas as melhores montarias, Soda era minha, naturalmente.
Zé Bento era uma das atrações da fazenda. Morava num pequeno casebre ao lado do casarão, o interior enegrecido pela fumaça do fogão-à-lenha, queimando por toda uma existência; no minúsculo quarto de dormir uma enxerga de palha e um velho cobertor; dois tocos de madeira que faziam as vezes de cadeiras na cozinha eram os lugares prediletos dos meninos – na brasa do fogão havia sempre milho ou mandioca assados –, atentos às histórias de Zé Bento.
A excitação do menino na véspera da partida resultou em noite insone, na expectativa da maior aventura até então vivida. E a grande aventura terminou em monumental decepção. O dia amanheceu nublado, a Mantiqueira encoberta por espessas nuvens, o passeio cancelado. Lembro-me bem, não pronunciei uma única palavra, obediente ao vaticínio de Manoelito, Não se pode subir a serra com esse tempo. Estava decretada a palavra final. Naquela época eu já sabia o que era frustração, mas doeu.
Passaram-se os dias. Maria Helena chatíssima como sempre, coitada, acabou sendo injustamente responsabilizada (internamente) pela estranha decisão que de repente tomei – o extraordinário acontecimento daquelas férias! Eu mesmo mal podia compreender: queria porque queria voltar para casa. Precisava voltar para casa. Faltavam poucos dias para o término das férias, quando todos retornaríamos à cidade, o que fazia de minha atitude algo ainda mais incompreensível. (Não aguento mais essa Maria Helena, ruminava eu.) Mas precisava voltar naquele dia, bati o pé, eu que não era disso, silencioso e obediente, comportadíssimo quase sempre, seguidor dos preceitos de minha mãe.
Tamanha era minha determinação que Manoelito resolveu me botar no caminhão do leite que passava todas as tardes pela fazenda rumo à cidade. E assim procedeu, para espanto e apreensão de toda a família. (Talvez ele soubesse.)
Não me lembro em que lugar da cidade me deixou o caminhão do leite. Cheguei à noite em casa, entrei sem tocar a campainha. Estavam todos à mesa, hora do jantar, meu pai, minha mãe, meu irmão Paulo e minha irmã pequena, Maria Helena. Receberam-me quase que em silêncio, sem qualquer manifestação de júbilo, nada de saudade, nenhum abraço. Apenas minha mãe teceu o curto comentário, Eu sabia que você viria para o aniversário de seu pai.
Eu não sabia, era mesmo aniversário de meu pai. Sentei-me à mesa e comi com minha família. (Nunca falamos sobre o ocorrido; para todos os efeitos, voltei naquele dia porque era aniversário de meu pai.)
Ao final do jantar, outra observação de minha mãe, Nossa, o André mudou de voz!
Verdade, o silêncio e o afeto de Manoelito deram-me voz de homem.
Foto tirada 40 anos após o relato acima, quando de minha visita a Guaratinguetá e à fazenda, meu amigo Manoelito já bem idoso, em frente ao casarão.
Adorei!!! E teremos novo livro! 😍
ResponderExcluirCuriosa para saber o que aconteceu com a mimada grosseira emburrada chatíssima!
ResponderExcluirA prosa do louco está a cada dia mais saborosa expressiva colorida fluente despojada. Maravilha de relato!
ResponderExcluirSó espero que a tal Helena não venha a ler esta postagem... Se isso acontecer, saiba ela de antemão que esta parte é puramente ficcional!