Representação de Mercado de Escravos
Um certo candidato à presidência da república, ao ser indagado em programa de televisão a respeito das cotas para negros, afirmou ser contrário a elas. Ele acredita no mérito das pessoas, e não em privilégios.
Até aí, tudo bem. O assunto é mesmo polêmico; há os que são a favor e os que são contra as cotas para negros nas universidades. Eu mesmo tive muita dúvida, até firmar opinião a favor das cotas, mesmo assim reconhecendo as dificuldades e inconvenientes do processo.
Discutir prós e contras é a maneira inteligente e civilizada de abordar a questão. Em vez de buscar tal caminho, o citado candidato resolve entornar de vez o caldo, radicalizar para valer, com esta antológica afirmação:
"...se for ver a história realmente, os portugueses nem pisavam na África, eram os próprios negros que entregavam os escravos".
Ou seja, o homem negou a existência da escravatura em nossa História! Logo agora em que o país faz um grande esforço para rever este período que tanto nos envergonha, perante nós mesmos e o mundo, ele declara que a responsabilidade é dos próprios negros.
Penso que isso é muito grave.
Um candidato à presidência que desconhece fatos elementares de nossa História não pode estar habilitado a conhecer o presente e enfrentar os problemas atuais. Para isso serve a História.
A total falta de sensibilidade para tratar um tema difícil é outro aspecto que chama atenção. Se olharmos a nossa volta, vamos ver que a escravidão ainda não terminou. A desigualdade social, especialmente aquela em desfavor do negro, é gritante, resultado de um passado que ainda não se resolveu.
Estimular e favorecer a educação me parece a melhor alternativa para mudar tal condição, mas se ela é negada de antemão, onde buscar a solução?
Há outra resposta do candidato que merece um último comentário. Quando ele se declarou contrário à política de cotas, foi indagado se esta não seria uma “resposta à dívida histórica do Brasil para com os afrodescendentes”, em consequência do período de escravidão. Ao que ele respondeu:
“Que dívida? Eu nunca escravizei ninguém na minha vida?”
Agora chegamos ao nível do absurdo! O candidato confunde a “dívida histórica do país” com algo pessoal, como se ele fosse maior que o próprio país. O narcisismo patológico torna-se evidente: “eu nunca escravizei ninguém”. A resposta é de uma infantilidade monumental.
Hannah Arendt, em seu famoso livro Eichmann em Jerusalém, denuncia o trabalho dos próprios judeus nos campos de concentração nazistas (fatos mostrados cruamente no filme O filho de Saul). Nem por isso ela deixa de reconhecer o Holocausto.
Este blogueiro muito raramente publica textos sobre política partidária ou posições deste ou daquele político. A mídia está repleta deles, e nada tenho a acrescentar. Porém, não posso permanecer em silêncio diante de tamanho descalabro, como o desta entrevista de um certo candidato à presidência da república.
Trata-se do tal homem das cavernas que todos ainda trazemos dentro de nós, e contra qual estamos eternamente em luta. No caso do candidato, não há luta.
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