Dois gênios da literatura - por quem nutro sentimento de quase veneração -, o mesmo ponto de vista sobre a psicanálise, exposto de forma enfática e definitiva, e a minha mais profunda discordância deles, nesse aspecto. Quem sou eu para discordar destes gigantes?, é a interrogação que de imediato me vem à mente. Mas outras ideias afloram em seguida, outras possibilidades, resultado não de conhecimento teórico ou de leituras e especulações filosóficas, e sim de aprendizado adquirido a partir da experiência pessoal de ser analisado.
Gosto de pensar que aquilo que o processo de análise pode nos proporcionar de melhor é uma vida mais confortável. Podemos supor que o escritor retire de seu mais profundo desconforto perante a vida a matéria bruta para sua escrita criativa. Remover, portanto, este desconforto seria o mesmo que secar a fonte da criatividade? Tal receio, por hipótese (mesmo que de origem inconsciente), não pode ser afastado; esta ideia há muito tem sido ventilada por analistas e não analistas, ao discutirem a conveniência ou não conveniência de escritores criativos, ou artistas de um modo geral, submeterem-se à psicanálise.
Eis a questão apresentada de outra maneira: é preciso viver desconfortavelmente para que se possa manter vivo o processo criativo? (A esta altura, o leitor há de ter percebido que evito as palavras “felicidade” e “infelicidade”, demasiadamente gastas para exprimir certos estados de espírito, substituindo-as por “conforto” e “desconforto”, estas mais modestas, mais comedidas, mais realistas.) Este é o preço que se tem de pagar para preservar a capacidade criativa? Não será um preço alto demais? Bem, cada um sabe de si, do ônus e do bônus, dos custos e dos benefícios.
No entanto, podemos perguntar ainda: se removido, pelo menos em parte, o desconforto de que estamos tratando, por intermédio de uma análise bem sucedida, será possível manter e até mesmo desenvolver, aprimorar mesmo, a capacidade de criar? Por que não? De que tem medo o escritor criativo? De que tem medo até mesmo o analista que se deixa contaminar por tais idéias? O que haveria de tão poderoso na psicanálise que poderia apagar o que de melhor tem uma pessoa? De fato, há aqueles que pensam que não vale a pena correr riscos, como se o risco de algo melhor também não fosse uma possibilidade. Risco, para eles, significa sempre e apenas o pior, o negativo, a ameaça, o perigo de morte. É verdade que corremos riscos desde que nascemos. Nossas mães não nos deixaram aprisionados em um quarto escuro para que não corrêssemos qualquer tipo de perigo. Pois, em um sentido mais amplo no modo de pensar a vida, risco apresenta também a possibilidade de uma experiência nova, criativa, positiva, que proporcione crescimento psíquico, algo, portanto, inerente ao processo de se estar vivo.
Não faltam exemplos como o de Georges Bataille (1897-1962), que de aspirante a escritor passou à condição de autor consagrado, após ter sido aconselhado por seu analista a registrar suas fantasias sexuais e obsessões de infância. Ao se referir ao papel libertador da análise, Bataille afirma: “O primeiro livro que escrevi só pude escrevê-lo depois da psicanálise, sim, ao sair dela. E julgo poder dizer que só liberto dessa maneira pude começar a escrever.” (História do olho, Cosac & Naify, 2003).
Não penso que esta seja uma visão exageradamente otimista, mas a ótica de quem deseja viver plenamente suas possibilidades e desenvolver seu potencial como ser humano. Uma análise bem sucedida pode nos proporcionar tal experiência, e com ela o risco de vivermos mais confortavelmente, sem perdermos nossa capacidade de criar. A existência de incontáveis psicanalistas bons escritores, sobretudo aqueles que se dedicam à escrita ficcional, pode ser considerada uma evidência do que aqui exponho.
Pura ficção: que tal pensarmos Kafka e Saramago, ainda vivos, mais felizes e de bem com a vida, e escrevendo ainda melhor! Para nosso deleite, é claro.
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