Do livro Paulo e Beatriz
Em visita à exposição recém aberta ao público, Beatriz estacou diante da grande tela colorida, alegre, cheia de vida, vibrante mesmo, flores, flores de todas as formas e tamanhos, muitas flores num verdadeiro jardim em vermelho e azul, denso jardim, e depois de contemplá-la extasiada por longo tempo buscou instintivamente na pequena nota ao lado o nome do artista: uma mulher: Beatriz Milhazes. Em seguida leu o título do quadro: Estive Feliz De Saber Que Você Está Bem.
Beatriz esqueceu a imagem e foi arrebatada pelas palavras.
Isso mais parece título de romance!, pensou. E ao pensar, bambearam-lhe as pernas, sobreveio a vertigem, empalideceu, o coração disparado saindo pela boca, a respiração ofegante, a vontade incontida de chorar. Chorou. Precisou de sentar-se, respirou fundo para volver a pensar. O que está acontecendo comigo? Por que meu corpo reage assim tão violentamente antes que meus próprios pensamentos possam vir à tona aclarados? De onde vem este bruto sentir em estado puro? Não foi a pintura que me desmontou, foi esta maldita frase, eu sei. Sei também que gosto ainda mais das palavras que das imagens. Foi sempre assim, antes mesmo de conhecer Clarice Lispector e seu coração selvagem. Agora, acho que é meu coração selvagem que grita!
Beatriz respirou fundo mais uma vez, levantou-se, desta feita nem olhou para o quadro, voltou a ler a frase que a desconcertara. Quem passasse diante daquela cena naquele preciso momento veria uma bela mulher de aproximadamente 50 anos, mais alta do que baixa, os cabelos cortados curtos a ressaltarem o longo pescoço à Modigliani, bem conservada de corpo, elegantemente vestida com simplicidade, parada diante da pequena nota ao lado que continha as especificações do quadro. Se você, prezado leitor, fosse também um visitante daquela exposição, se bom observador fosse e não estivesse com pressa, talvez antes mesmo de olhar para o quadro pudesse ver que a mulher se quedava imóvel, o olhar perdido, o rosto molhado de lágrimas, um leve tremor nos lábios, transbordando emoções de antigas lembranças em profundo silêncio. Ela estava só.
Para Beatriz, o nome dado ao quadro falava de uma história de amor - da sua história de amor. Tempo houve em que ela amou desesperadamente o seu homem; separaram-se, mas ela nunca deixou de amá-lo. Reencontraram-se fortuitamente num aeroporto de Paris, almoçaram juntos, puderam conversar; ela soube que ele estava bem, havia feito um bom casamento, constituíra família, tinha três filhos. Ela, por sua vez, pouco falou de sua própria intimidade. Despediram-se.
Ao voltar para casa, Beatriz percebeu que num determinado momento, em um país distante, ela esteve feliz de saber que ele estava bem. O que ela não pôde disfarçar, foi a sombra de tristeza e melancolia a toldar-lhe a alma diante de tais pensamentos.
Hoje, ao ver aquela pintura tão alegre, plena de vida, e ler seu título desconcertante - ah!, a força das palavras! -, a mesma sombra... O que podia ter sido e que não foi. Ao sair da exposição, Beatriz encontrou o céu azul, o sol brilhante, o ar fresco e perfumado da manhã de fim de primavera, a vida presente.
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