sexta-feira, 22 de junho de 2012

Terror sem nome


Ao discorrer sobre o sonho, em Cogitações (1959), Bion assinala: “Tanto o superego social como o individual contribuem, em função de seu terrorismo, para a necessidade de o paciente fazer ataques destrutivos ao mecanismo onírico. Quando isso acontece na sessão, o paciente mostra ter medo de estar morto ou de ter perdido a consciência, pois o sonho é aquilo que torna disponível, como parte da personalidade, tanto os eventos da realidade emocional externa como os eventos da realidade psíquica interna pré-verbal. Se a capacidade para o trabalho onírico é destruída, o paciente sente um temor particularmente aterrorizador, porque não tem nome, e porque a própria qualidade de ausência de nome deriva da destruição da capacidade do paciente para o trabalho onírico, que é o mecanismo responsável pelo nomear.”

Kafka nutria gosto especial pela narrativa breve (contos, novelas, aforismos, parábolas, minicontos), forma que talvez supere em importância literária os chamados grandes romances. Ainda nas páginas dos Diários encontramos algo genuinamente kafkiano, datado de 1922, que poderíamos denominar um miniconto: Duas crianças, sozinhas no apartamento, entraram numa grande mala, a tampa fechou-se, não a conseguiram abrir e morreram asfixiadas.
Sob a perspectiva psicanalítica, essa curtíssima narrativa poderia ser considerada um sonho de vigília. Ou poderia surgir em uma de nossas sessões, trazida pelo paciente como um sonho de fato. Afinal, Kafka e inúmeros outros autores descrevem em suas obras a fenomenologia do suceder psíquico que Freud observava em seu consultório.
Um fato real nos foi relatado por uma colega: “Pela manhã, li seu trabalho sobre Kafka e a Psicanálise. Para surpresa minha, à tarde, uma paciente me contou durante uma sessão, muito angustiada, que quando criança, em uma brincadeira, havia ficado presa em uma mala.”
       Agora, o que podemos pensar sobre isso? Ficção ou realidade?   Quando nos deparamos com este miniconto, por associação livre, o tema que nos surge à mente é aquele que Bion denominou de “terror sem nome”. Ora, Literatura também é trabalho onírico, e Kafka parece que sabia disso. O que é a obra literária senão um “sonho de vigília”, em que o autor apreende a intimidade da alma humana? O que é a criação senão o resultado da ação da “função alfa”, traduzindo em metáforas, contos, histórias e modelos o sofrimento humano transformado em pensamento literário?
     Voltemos ao uso que o psicanalista pode fazer da Literatura. Diante do miniconto de Kafka, em associação com a experiência relatada pela colega, podemos pensar no analista e analisando vivendo um impasse – presos em uma mala – até a morte (interrupção da análise). Ao tomar consciência desta situação, ambos podem fazer alguma coisa por eles mesmos e pelo processo analítico.

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