Ao discorrer sobre o sonho,
em Cogitações (1959), Bion assinala: “Tanto o superego social como o individual
contribuem, em função de seu terrorismo, para a necessidade de o paciente fazer
ataques destrutivos ao mecanismo onírico. Quando isso acontece na sessão, o
paciente mostra ter medo de estar morto ou de ter perdido a consciência, pois o
sonho é aquilo que torna disponível, como parte da personalidade, tanto os
eventos da realidade emocional externa como os eventos da realidade psíquica
interna pré-verbal. Se a capacidade para o trabalho onírico é destruída, o
paciente sente um temor particularmente aterrorizador, porque não tem nome, e
porque a própria qualidade de ausência de nome deriva da destruição da
capacidade do paciente para o trabalho onírico, que é o mecanismo responsável
pelo nomear.”
Kafka nutria gosto especial
pela narrativa breve (contos, novelas, aforismos, parábolas, minicontos), forma
que talvez supere em importância literária os chamados grandes romances. Ainda
nas páginas dos Diários encontramos
algo genuinamente kafkiano, datado de 1922, que poderíamos denominar um
miniconto: “Duas crianças, sozinhas no apartamento, entraram numa grande mala, a
tampa fechou-se, não a conseguiram abrir e morreram asfixiadas.”
Sob a perspectiva psicanalítica,
essa curtíssima narrativa poderia ser considerada um sonho de vigília. Ou
poderia surgir em uma de nossas sessões, trazida pelo paciente como um sonho de
fato. Afinal, Kafka e inúmeros outros autores descrevem em suas obras a
fenomenologia do suceder psíquico que Freud observava em seu consultório.
Um fato real nos foi
relatado por uma colega: “Pela manhã, li seu trabalho sobre Kafka e a
Psicanálise. Para surpresa minha, à tarde, uma paciente me contou durante uma
sessão, muito angustiada, que quando criança, em uma brincadeira, havia ficado
presa em uma mala.”
Agora, o que podemos pensar sobre
isso? Ficção ou realidade? Quando
nos deparamos com este miniconto, por associação livre, o tema que nos surge à
mente é aquele que Bion denominou de “terror sem nome”. Ora, Literatura também
é trabalho onírico, e Kafka parece que sabia disso. O que é a obra literária
senão um “sonho de vigília”, em que o autor apreende a intimidade da alma
humana? O que é a criação senão o resultado da ação da “função alfa”,
traduzindo em metáforas, contos, histórias e modelos o sofrimento humano
transformado em pensamento literário?
Voltemos ao uso que o psicanalista
pode fazer da Literatura. Diante do miniconto de Kafka, em associação com a
experiência relatada pela colega, podemos pensar no analista e analisando
vivendo um impasse – presos em uma mala – até a morte (interrupção da análise).
Ao tomar consciência desta situação, ambos podem fazer alguma coisa por eles
mesmos e pelo processo analítico.
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