“O mito é o nada que é tudo.”
Fernando Pessoa
O mito surge na ordem do simbólico.
Diferentes povos e culturas, antes mesmo dos gregos e seus deuses, habitantes
do Olimpo, cultivam, transformam, recriam, atualizam sua própria mitologia. Os
mitos, grosso modo, apresentam duas
funções básicas: em primeiro lugar, responder a questões que o homem formula
desde a aurora de sua infância (de onde viemos?, para onde vamos?, por
exemplo); em segundo lugar, justificar e dar sentido a rituais e costumes
incorporados pelas diferentes culturas, ao longo de milênios (Graves, 1986).
Bion (s/d,a) afirma que “não podemos
dizer como os mitos começaram, nem somos capazes de observar o processo de
formação de mitos dentro de nós, caso exista algum.” Porém, ele ressalta a
importância do símbolo pictórico, a partir do qual o mito é formado e
“estocado”, para ser então utilizado de acordo com as circunstâncias e
necessidades (Bion, 1959). Tais necessidades e circunstâncias surgem a todo
momento no exercício da clínica, e se a dupla analítica pode identificar o uso
que se está fazendo do mito, então ambos podem pensar sobre ele e ver como os
personagens desenvolvem-se, e, às vezes, passam a reger suas vidas.
O mito
Eis um mito que, de tanto
repetir-se, passado de geração a geração até os dias de hoje, para muitas
pessoas ganhou foro de verdade: “Uma vez quebrado um vaso (de cristal), ele
nunca mais será o mesmo”. Parece que ele se aplica, por aqueles que o tomam
como verdade e destinação – e é evidente que então, para tais pessoas, não se
trata de mito –, a duas situações bem definidas, ambas ligadas à relação com o
outro: as amizades e as relações amorosas.
Antes de mais nada, é preciso
admitir que a expressão “vaso quebrado” é forte, expressiva, bastante
significativa, poderosa até, em virtude de sua contundente concretude: um vaso
é um vaso. A importância do símbolo pictórico torna-se agora uma evidência. Não
raro, acrescenta-se a esta expressão o material do qual o vaso é constituído, o
cristal, algo definitivamente irreparável quando danificado. O símbolo torna-se
cristalino e ainda mais verdadeiro.
Três
situações clínicas
O primeiro
tipo de relato que se pode observar com frequência na prática clínica é aquele
em que o paciente A, ao falar do doloroso rompimento de uma relação amorosa,
ouve do ex-parceiro que “o vaso já não pode ser reparado...” Porque ainda ama,
A está disposto a perdoar, a reconstruir a relação, porém, diante de argumento
tão poderoso – o mito com força de verdade – ele não é capaz de pensar
alternativas, sofre ainda mais, sem ao menos dar-se conta da razão deste
sofrimento adicional, acredita mesmo que não há possibilidade de reparar o que
foi danificado. Ambos, paciente e ex-companheiro tornam-se vítimas do mito do
vaso partido, presos em uma armadilha que não permite qualquer pensamento
criativo.
Na segunda situação clínica, o
paciente B crê, ele mesmo, que de fato o vaso partido não pode ser consertado.
Agora é o outro que pode estar disposto a reconstruir a relação, porque ainda
ama, mas B já não investe nesta possibilidade. Em uma situação invertida, ambos
caem na mesma armadilha referida acima, sem que possam dar-se conta (ter
consciência emocional) da diferença entre a concretude do vaso quebrado e a plasticidade
subjetiva da mente como recurso psíquico a ser utilizado.
Experiência emocional semelhante
ocorre quando, ao término de uma forte, antiga, importante relação de amizade,
o paciente C, que se sente desiludido, traído, enganado, em virtude de alguma
atitude que ele considera irreparável, faz uso do mesmo mito. Em tais
situações, pela mágoa e ressentimento remanescentes, a relação é
definitivamente rompida, perde-se o amigo, finda uma amizade, com graus
variáveis de dor psíquica de ambas as partes.
Bion (s/d,b) ressalta que “existem
situações que são sentidas como problemas sem solução, ou sentidas como
problemas para os quais não se pode achar nenhuma solução com o equipamento
disponível para o indivíduo que as esteja experimentando. Tais situações não
são absolutas: podem ser razoavelmente comuns e de curta duração, mas se este
tipo de experiência perdura, acaba se tornando um problema que faz exigências
ao equipamento de inteligência e à personalidade do indivíduo.” Não poderíamos
associar tais formulações de Bion aos mitos que ganham força de verdade?
Onipotência de pensamento
Quando o mito adquire força de
verdade, apenas nossa capacidade (humana) de pensar a experiência emocional pode
fazer frente a ele, desmitificando-o. A impossibilidade de reconstituir algo
que se quebra em nossa mente faz supor que somos infalíveis; e se porventura
erramos, que não há remédio para nossos erros. Trata-se da onipotência de
pensamento, uma das características marcantes do psiquismo infantil, ainda em
desenvolvimento.
Em Totem e tabu, ao descrever os
efeitos do animismo, magia e onipotência de pensamentos, Freud (1913) assinala:
“Assim, vê-se que a onipotência de pensamentos, a supervalorização dos processos mentais em comparação com a realidade,
desempenha um papel irrestrito na vida emocional dos pacientes neuróticos e em
tudo que dela se deriva.” O grifo é meu: supervalorizar o processo mental em
detrimento da realidade pode ser comparado à função do mito que adquire força
de verdade. Acredita-se mais no valor do símbolo pictórico do vaso partido do
que na realidade psíquica, subjetiva, capaz de reparação.
Bion (1991), em Learning from experience, torna mais clara esta ideia, ao
acrescentar os conceitos de elementos alfa e beta: “Ao contrário dos elementos-alfa,
os elementos-beta não se experimentam como fenômenos, mas como coisas-em-si. As
emoções são, de igual modo, objetos sensíveis.” Mais adiante, ele prossegue:
“Os elementos-beta não se utilizam como pensamentos oníricos, mas são passíveis
de uso na identificação projetiva. Têm importância para produzir atuações. São
objetos a evacuar ou usar para determinado tipo de pensar que depende do
manipular coisas-em-si quando manipular substitui palavras ou idéias, por
ausência de representação mental e poder de abstração.”
Pois parece constituir-se o fenômeno
ao qual estamos denominando de mito do vaso partido: ausência de representação
mental e incapacidade de abstração geram um certo tipo de “pensar” onde
idéias ou palavras são tomadas como
coisas-em-si. Tão somente quando a experiência emocional do paciente pode ser
transformada em elementos-alfa é que adquire a capacidade de sonhar.
Não cabe no presente trabalho
elaborar conceitos já bem estabelecidos, como os da alternância entre as
posições esquizo-paranóide e depressiva, a tolerância para com a “interação
contínua e dinâmica” entre ambas (Bion, s/d, c). Porém, nas situações clínicas
acima descritas, quando o paciente A fica convencido de que o argumento
apresentado pelo outro (o irrecuperável vaso partido) é de fato irrefutável – e
deprime-se com isso –, entenda-se que ambos permanecem em PS, sem a
possibilidade de atingir PD.
Amor e ódio
Em oposição a estes estados de onipotência e onisciência,
equivocar-se é o natural, sendo também natural que haja recursos para
reparação; de outro modo, a vida (de relação) nos seria insuportável, eivada de
permanente culpa.
O ódio, em especial aos objetos
internos, parece constituir-se no maior obstáculo à possibilidade de reparação.
Já o amor, ao contrário, tem efeito reparador, por sua natureza mesma (Klein,
1937a). Não se trata aqui do amor “religioso”, piegas, moralista, narcísico,
mas de um sentimento incrivelmente forte, que não se sabe exatamente de onde
vem, quando e como surge no ser humano. Segundo Klein (1937b), trata-se da
“mais complexa de todas as emoções humanas: aquilo que chamamos de amor”.
O ódio pode gerar outro sentimento,
complexo, que se insere no mito em questão e em suas repercussões clínicas: o
sentimento de culpa inconsciente. Ainda segundo Klein (1937c), “esse sentimento
surge do medo inconsciente de ser incapaz de amar os outros de verdade ou de
forma suficiente e, principalmente, de não conseguir dominar seus próprios
impulsos agressivos: essas pessoas têm medo de ser um perigo para aquele que
amam”. Além da culpa pelo vaso partido, pode-se supor o surgimento do medo de
que, se restaurado, o vaso possa quebrar-se novamente. A elaboração da culpa
depressiva e a consequente reparação não oferecem garantias de infalibilidade.
Pode-se denominar de não-mito, ou a
verdade possível, o fato de que, diante do “vaso quebrado” possa surgir
oportunidade única para crescimento psíquico, de tolerância a nós mesmos e à
nossa natureza, a possibilidade de enfrentar a falibilidade, fragilidade, o
não-saber enfim, próprios do homem. E reconhecer a condição humana: apenas uma
partícula nesse vastíssimo universo incompreensível e misterioso. A frase de
Schwarz-Bart (1980), em seu livro O último dos justos, de força
estético-literária imbatível, resume a ideia: “Nossos olhos recebem a luz das
estrelas mortas.”
O embate entre o mito e a verdade
possível representa a peleja constante entre a necessidade de saber e a
dificuldade de permanecer na ignorância. É a necessidade de saber que gera o
mito. Porém, esta mesma necessidade pode também gerar ódio, diante do fato
inquestionável de que nada sabemos; permanecer na ignorância, a aceitação desta
condição, pode gerar o sentimento amoroso da tolerância (aos objetos externos e
internos, especialmente a estes últimos).
E o que o homem pode fazer diante da
verdade possível, inspirada pelo sentimento amoroso? Quando um vaso (concreto)
de pedra, barro ou cristal se quebra, o homem constrói um novo vaso. Os cacos
daquele que se quebrou viram objeto da arqueologia, têm sua importância, mesmo
na condição de cacos. Por analogia, e apenas por analogia, diante da
subjetividade de nossa mente, pode-se pensar que assim vão se transformando nossas
experiências emocionais ao longo da vida: ao refazê-las a cada novo dia, tem-se
a oportunidade de aprender com elas, de crescer a partir delas. Aquilo que se
quebra em nosso espírito pode então ser transformado.
E o que o psicanalista pode fazer
diante do mito trazido por seu paciente? A preocupação constante e permanente
de Bion (s/d,d) para com o analista não poderia faltar nas situações clínicas
apresentadas no presente trabalho: “o analista poderia ter à sua disposição
certos mitos, como o cientista tem certos procedimentos matemáticos; poderia,
com frequência produzir as suas associações livres a esses mitos, de modo a
ficar familiarizado com os mitos e com seu uso; então, poderia aprender a
detectar, a partir do material de seu paciente, qual o mito apropriado e, a
partir daí, qual é a interpretação apropriada. Então, uma forma do analista
praticar seu ofício, mantendo-se treinado para seu trabalho, seria a de
associar livremente aos mitos que escolhesse.”
Caberá aos analisandos introjetarem a colaboração criativa
do analista, do mesmo modo que o leitor pode tirar proveito da elaboração
estético-artística do poeta. Antony Burgess (2008), em seu livro sobre
literatura inglesa, cita Richard Lovelace (1618-1658) como legítimo
representante da poesia galante e cavalheiresca do século XVII, e que oferece
já um bom exemplo da diferença entre concretude e subjetividade, nas relações
amorosas:
Stone walls do not a prision make,
Not iron bars a cage;
Minds innocent and quiet take
That for an hermitage;
If I have freedom in my love
And in my soul am free,
Angels alone, that soar above,
Enjoy such liberty.[2]
Conclusão
As experiências vividas fazem parte
da nossa arqueologia psíquica, têm seu valor, mas são passado diante do novo
dia. O que se tem a perder diante do novo dia, que nunca se sabe como vai ser?
Ora escolhe-se o ódio, o que há de dificultar, senão impossibilitar a reparação
– o mito do vaso partido; ora escolhe-se o amor, que haverá de reconstruir
nossa realidade psíquica, permitindo viver-se um novo dia. A escolha é sempre
de cada um: mito e verdade, ódio e amor, ambos presentes e em graus variáveis,
a influenciar decisivamente todas as relações humanas.
Referências
bibliográficas
Bion,
W.R.. Torre de Babel: possibilidade de usar um mito racial (s/d-a). In: Cogitações. Rio de Janeiro: Imago
Ed., 2000, p.234-235.
Idem.
O sonho (1959). In: Cogitações. Rio
de Janeiro: Imago Ed., 2000, p. 59.
Idem.
Torre de Babel: possibilidade de usar um mito racial (s/d,b). In: Cogitações. Rio de Janeiro: Imago
Ed., 2000, p.242.
Idem.
O aprender com a experiência. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1991, p.25-26.
Idem
(s/d,c). In: Cogitações. Rio de
Janeiro: Imago Ed., 2000, p.208.
Burgess,
A. A literatura inglesa. São Paulo: Ed. Ática, 2008, p. 128-129.
Freud,
S. Totem e tabu. In: Obras
psicológicas completas de S. Freud, Edição standard brasileira, vol.
XIIl . Rio de Janeiro: Imago Ed., 1996, p.97.
Graves,
R. Introduction of New Larrousse encyclopedia of mythology. Londres: Hamlyn
Publishing, 1986, p.V.
Klein,
M. Amor, culpa e reparação (1937a). In:
Amor, culpa e reparação e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1996,
p.354.
Idem.
(1937b), p.347.
Idem.
(1937c), p.350.
Pessoa,
F. Ulisses. In: Mensagem. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998, p.23.
Schwarz-Bart,
A.. O último dos justos. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009, p.9.
[1]
Versão resumida deste trabalho, destinada ao público leigo, foi publicada com
este mesmo título no jornal Correio Brasiliense em 10/10/2009.
[2] Muros de pedra não fazem uma prisão,/ Nem grades de ferro uma jaula;/ Mentes
inocentes e tranquilas/ Fazem delas um refúgio;/ Se eu tenho liberdade em meu
amor/ E em minha alma sou livre,/ Só os anjos, que planam lá no alto/ Gozam de
tanta independência. (Tradução de Duda Machado.)
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