Sempre que vemos
alguém a quem muito admiramos pronunciar-se de forma visceralmente discordante
de nós, isso nos causa alguma estranheza, desconcerto, desconforto mesmo.
Aconteceu comigo, ao ler em Kafka: “Não é um prazer ocuparmo-nos com a
psicanálise e mantenho-me tão afastado dela quanto possível...” (Meditações,
Guimarães Ed., 1997). E em José Saramago: “A última coisa que faria neste mundo
seria psicanalisar-me.” (As palavras de Saramago, Companhia das Letras, 2010).
Dois
gênios da literatura – por quem nutro sentimento de quase veneração –, o mesmo ponto de vista sobre a
psicanálise, exposto de forma enfática e definitiva, e a minha mais profunda
discordância deles, nesse aspecto. Quem sou eu para discordar destes gigantes?,
é a interrogação que de imediato me vem à mente. Mas outras ideias afloram em
seguida, outras possibilidades, resultado não de conhecimento teórico ou de
leituras e especulações filosóficas, e sim de aprendizado adquirido a partir da
experiência pessoal de ser analisado.
Gosto de pensar
que aquilo que o processo de análise pode nos proporcionar de melhor é uma vida
mais confortável. Podemos supor que o escritor retire de seu mais profundo
desconforto perante a vida a matéria bruta para sua escrita criativa. Remover,
portanto, este desconforto seria o mesmo que secar a fonte da criatividade? Tal
receio, por hipótese (mesmo que de origem inconsciente), não pode ser afastado;
esta ideia há muito tem sido ventilada por analistas e não analistas, ao
discutirem a conveniência ou não conveniência de escritores criativos, ou
artistas de um modo geral, submeterem-se à psicanálise.
Eis a questão
apresentada de outra maneira: é preciso viver desconfortavelmente para que se
possa manter vivo o processo criativo? (A esta altura, o leitor há de ter
percebido que evito as palavras “felicidade” e “infelicidade”, demasiadamente
gastas para exprimir certos estados de espírito, substituindo-as por “conforto”
e “desconforto”, estas mais modestas, mais comedidas, mais realistas.) Este é o
preço que se tem de pagar para preservar a capacidade criativa? Não será um
preço alto demais? Bem, cada um sabe de si, do ônus e do bônus, dos custos e
dos benefícios.
No entanto,
podemos perguntar ainda: se removido, pelo menos em parte, o desconforto de que
estamos tratando, por intermédio de uma análise bem sucedida, será possível
manter e até mesmo desenvolver, aprimorar mesmo, a capacidade de criar? Por que
não? De que tem medo o escritor criativo? De que tem medo até mesmo o analista
que se deixa contaminar por tais idéias? O que haveria de tão poderoso na
psicanálise que poderia apagar o que de melhor tem uma pessoa? De fato, há
aqueles que pensam que não vale a pena correr riscos, como se o risco de algo
melhor também não fosse uma possibilidade. Risco, para eles, significa sempre e
apenas o pior, o negativo, a ameaça, o perigo de morte. É verdade que corremos
riscos desde que nascemos. Nossas mães não nos deixaram aprisionados em um
quarto escuro para que não corrêssemos qualquer tipo de perigo. Pois, em um
sentido mais amplo no modo de pensar a vida, risco apresenta também a
possibilidade de uma experiência nova, criativa, positiva, que proporcione crescimento psíquico, algo, portanto,
inerente ao processo de se estar vivo.
Não faltam
exemplos como o de Georges Bataille (1897-1962), que de aspirante a escritor
passou à condição de autor consagrado, após ter sido aconselhado por seu analista
a registrar suas fantasias sexuais e obsessões de infância. Ao se referir ao
papel libertador da análise, Bataille afirma: “O primeiro livro que escrevi só
pude escrevê-lo depois da psicanálise, sim, ao sair dela. E julgo poder dizer
que só liberto dessa maneira pude começar a escrever.” (História do olho, Cosac
& Naify, 2003).
Não penso que
esta seja uma visão exageradamente otimista, mas a ótica de quem deseja viver
plenamente suas possibilidades e desenvolver seu potencial como ser humano. Uma
análise bem sucedida pode nos proporcionar tal experiência, e com ela o risco
de vivermos mais confortavelmente, sem perdermos nossa capacidade de criar. A
existência de incontáveis psicanalistas bons escritores, sobretudo aqueles que
se dedicam à escrita ficcional, pode ser considerada uma evidência do que aqui
exponho.
Pura ficção: que
tal pensarmos Kafka e Saramago, ainda vivos, mais felizes e de bem com a vida,
e escrevendo ainda melhor! Para nosso deleite, é claro.
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