A sessão de hidroterapia é coisa séria, mas Tonico é um velho debochado.
Enquanto todos entram na água pela escada de alumínio, com todo cuidado – um tombo pode ser fatal –, Tonico, para se mostrar, grita o nome de seu time de futebol e mergulha de cabeça. De início aquilo causava extrema irritação em Laura, a fisioterapeuta chefe, mulher seríssima, nos seus 50 anos bem vividos, corpinho de 25, bonita, elegante no andar, vestindo sempre caça jeans e camiseta polo brancas, e acima de tudo, muito brava, capaz de impor respeito assim que entra na academia. Nem é respeito, é medo mesmo, gritante o silêncio que se faz à chegada da chefe.
Isso mudou. Mudou graças ao velho Tonico, manco de uma perna, a coluna esbodegada, com sua tendinite crônica do glúteo médio direito, que ele chama de dor-na-bunda, catarata em ambos os olhos de modo a não reconhecer qualquer pessoa a mais de cinco metros de distância, baixinho, careca e barrigudo, além de desbocado. Ah, e surdo. No começo mergulhava escondido de Laura, depois na presença dela, para espanto dos fisioterapeutas que trabalham dentro d’água (Laura anda silenciosamente em torno da grande piscina, a observar atentamente o desempenho de todos, mas não se molha).
Ao terminar a sessão, certa feita Tonico foi chamado ao consultório de Laura, que lhe pediu educadamente que ele não mergulhasse, a piscina não era funda o suficiente, havia o risco de trauma raquimedular, era um mau exemplo para os demais pacientes, e tome sermão sermão sermão. Não adiantou nada! (Sermão nunca adianta, é perda de tempo.) Dia seguinte Tonico mergulhou de cabeça e foi aplaudido pelos colegas de trabalho.
– Por isso que eu digo, todo psiquiatra é maluco!, exclamou Laura em alto e bom som, para todo mundo ouvir, porém sem qualquer irritação, a rir mesmo da situação, conformada.
Pronto, Tonico é maluco. Ele agora está liberado, pode fazer ou falar o que lhe der na telha, sem restrições porque ele é um velho maluco. Um maluco feliz.
Ao sair do mergulho Tonico passa a mão no rosto, ajeita a touca, cumprimenta a todos, um por um, Bom dia, Bom dia, Como passou desde a última sessão?, Estou melhor, Que bom!, quando encontra Lurdes, que não fala, sussurra, aos 86 anos, é aquele abraço e dois beijinhos, alegria pura; são curtos diálogos de rápido contato pessoal, que Tonico está sim interessado naquelas pessoas que vivem as mesmas dores que ele vive.
Dessa vez, antes de mergulhar, Tonico grita BASQUIAT! Segue-se o silêncio. Passam alguns minutos e aproxima-se lentamente uma mulher que fazia seus exercícios no lado oposto da piscina. Fala com voz mansa e doce, Estou aqui há três anos e nunca ouvi alguém pronunciar o nome de um artista, você conhece o Basquiat?, Conheço, gosto muito, Eu sou artista plástica, Muito prazer, Dulce Ramos, Tonico, Seu nome todo mundo conhece, por causa dos mergulhos, Ah!. Assim começa preciosa amizade. É que Tonico é maluco.
Há dois meses Tonico faz seus exercícios ao lado de um rapaz alto, louro, olhos verdes, bonito rapaz, outro de fala mansa e doce, embora calado, compenetrado na fisioterapia. Tonico gostou dele antes mesmo de conhecê-lo, e sem-mais-nem-porque lhe diz, Queria conversar com você, Então te espero depois da minha sessão, Combinado. Tornaram-se grandes amigos, bebem vinho juntos, veem filmes, conversam sobre filosofia, portanto sobre a morte, falam de futebol, contam piadas, às vezes choram, a emoção sempre à flor da pele.
– Por que você disse naquele dia que queria conversar comigo?
– Sei não. Laura diz que sou maluco. Diz que todo psiquiatra é maluco. Engraçado, nunca fui psiquiatra! Só gosto de gente.