segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Religião e Psiquiatria

O tema de que tratarei em seguida é ao mesmo tempo de grande interesse para mim, e espinhoso; aceito-o por sugestão – ou se trata de uma provocação? –, apresentada por uma pessoa muito querida e que também aprecia o assunto, mas com uma diferença entre nós, o que não impede que conversemos sempre: ele pertence aos que creem, e eu aos que não creem.
            Trata-se do artigo de Cláudia Collucci publicado na Folha de S. Paulo (24/11), sob o título Religião é benéfica para tratamento psiquiátrico, diz associação.
A Associação Mundial de Psiquiatria acaba de aprovar documento declarando a “importância de se incluir a espiritualidade no ensino, pesquisa e prática clínica da psiquiatria”. A proposta não é prescrever uma crença religiosa ao paciente, mas conversar sobre o assunto.
Os estudos científicos sobre  o tema tornam-se cada vez mais frequentes, e a maioria deles conclui que “há correlação entre espiritualidade e bem-estar”,
especialmente entre pessoas sob estresse ou em situações de extrema fragilidade.  Alguns pesquisadores sugerem que a religiosidade sirva para “reforçar laços sociais, reduzindo a incidência de solidão e depressão e amenizando o estresse causado por doenças ou perdas”.
Diz o artigo: “Três meta-análises (revisões científicas) já realizadas sobre o tema indicam que, após controle de variáveis como estado de saúde da pessoa, a frequência a serviços religiosos esteve associada a um aumento médio de 37% na probabilidade de sobrevida em doenças como o câncer.”
Outro estudo recente publicado na revista Cancer revisou dados de mais de 44 mil pacientes e concluiu que “são os aspectos emotivos da espiritualidade e da religiosidade aqueles que mais trazem benefícios para a saúde física e mental de pacientes com a doença”.
Por outro lado, as crenças religiosas também podem atuar de modo negativo, “quando enfatizam a culpa, a aceitação acrítica de ideias, (...) punição, intolerância, abandono de tratamentos médicos".
            É verdade que médicos, incluindo psiquiatras, e certos psicanalistas, evitam tratar do assunto religião com seus pacientes. Pouco conversam sobre o assunto, considerando-o algo que pertence exclusivamente ao foro íntimo do paciente. Segundo Kenneth Pargament, professor de psicologia clínica na Bowling Green State University (Ohio), entre as razões para tal comportamento estaria a “antipatia pela religião que sempre houve entre os ícones da psicologia, como Sigmund Freud”. Para este pesquisador, “é importante a compreensão de que a religião e a espiritualidade são entrelaçadas no comportamento humano e que os profissionais precisam estar preparados para avaliar e abordar questões que surjam no tratamento. Para muitas pessoas, a religião e a espiritualidade são recursos-chave que podem facilitar o seu crescimento. Para outros, são fontes de problemas que precisam ser abordadas durante o tratamento."
            Devo ainda ao provocador deste texto, a tal pessoa muito amada, o prazer da releitura de O futuro de uma ilusão, de Sigmund Freud. Afirma o criador da Psicanálise:

“O desamparo do homem, porém, permanece e, junto com ele, seu anseio pelo pai e pelos deuses. Estes mantêm sua tríplice missão: exorcizar os terrores da natureza, reconciliar os homens com a crueldade do Destino, particularmente a que é demonstrada na morte, e compensá-los pelos sofrimentos e privações que uma vida civilizada em comum lhes impôs.”

            Freud está a referir-se à infância da raça humana e a do próprio indivíduo: todos nós, ainda hoje, mesmo adultos. Alguém já disse: arranhe um adulto e verá surgir uma criança.
            Freud continua:

“Quando o indivíduo em crescimento descobre que está destinado a permanecer uma criança para sempre, que nunca poderá passar sem proteção contra estranhos poderes superiores, empresta a esses poderes as características pertencentes à figura do pai; cria para si próprio os deuses a quem teme, a quem procura propiciar e a quem, não obstante, confia sua própria proteção.”

            E conclui, ao referir-se às ideias religiosas:

“... são ilusões, realizações dos mais antigos, fortes e prementes desejos da humanidade. O segredo de sua força reside na força desses desejos.”

            Bem, após esta longa argumentação freudiana, vamos ao que interessa, em relação ao artigo que inicia este texto e em particular ao que o Dr. Pargament chamou de “antipatia pela religião”. Ele não deve ter lido Freud atentamente; eis o que Freud afirmou:

“Quando digo que todas essas coisas são ilusões, devo definir o significado da palavra. Uma ilusão não é a mesma coisa que um erro; tampouco é necessariamente um erro. ...O que é característico das ilusões é o fato de derivarem de desejos humanos.”

            O grifo é meu, e desejo salientar a tolerância e compreensão aqui demonstradas por Freud para com a humanidade. Iludir-se, é verdade, é uma escolha pessoal, mas não necessariamente um erro. E desejo é desejo! Em determinadas circunstâncias, especialmente aquelas de fragilidade intensa, por que não ser consolado?
            Aí entra a habilidade do médico, do psiquiatra, do terapeuta, em poder conversar com seu paciente, em considerar verdadeiramente o que ele traz para a consulta – seus temores, angústias, incertezas, fraquezas, pavores infantis – mesmo que o assunto não seja aquele da “predileção” do profissional. Enfim, a capacidade de lidar com os aspectos emocionais mais profundos do paciente, muitas vezes ligados à crença religiosa dele. Falar sobre isso pode ser muito importante para o paciente; saber ouvi-lo, uma arte.
            No entanto, se é sentimento de culpa ou necessidade de punição que o paciente traz, isso também precisa ser conversado e esclarecido, quando possível. O trabalho analítico bem conduzido pelo analista e analisando pode propiciar enorme alívio em tais circunstâncias.
Aqui concordo inteiramente com a proposta da Associação Mundial de Psiquiatria, que prescreve um melhor preparo dos profissionais para lidar com o tema com seus pacientes. Em outras palavras, que os profissionais sejam menos arrogantes e donos da verdade, e mais humanos, ao admitir que a humanidade ainda não se libertou de sua infância.

Referência:




2 comentários:

  1. Ótimo! Concordo 100% com a sensata ponderação do louco. É interessante que estando de lados opostos (em relação à crença), podemos convergir quanto à conveniência de se dar algum alívio ao sofrimento das pessoas. Acho que assim o louco acaba se mostrando mais cristão do que muitos cristãos formais.

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