Não são
poucos os relatos publicados em livros, efetuados pelos chamados “doentes
mentais”, e em particular pelos esquizofrênicos, dada a excentricidade de seu
modo de pensar, o que desperta curiosidade nas pessoas consideradas “normais”.
Porém, na maioria das vezes, tais publicações pecam pela baixa qualidade
literária, o que torna a leitura árida, cansativa, até impossível.
O mesmo
não acontece com Hospício é Deus – Diário
I, de Maura Lopes Cançado. O livro foi publicado pela primeira vez em 1965;
esgotou-se e permaneceu fora de catálogo desde então. Agora a Editora Autêntica
publica caixa com os dois volumes, incluindo O sofredor do ver (livro de contos), além do citado Diário (2015).
Maura nasceu em São Gonçalo do Abaeté – MG, em1929, e
morreu no Rio de janeiro em 1993. Filha de fazendeiro abastado, já na infância
denotava comportamento errático, para dizer o mínimo, mimadíssima, perdidamente
apaixonada pelo pai. Chegou a ganhar da mãe um Paulistinha, quando se exibia
pela região como a única mulher capaz de pilotar uma avião. Em seguida vieram
as crises epilépticas. Daí em diante, até a morte, a vida de Maura torna-se uma
desgraça, para usar uma palavra dela
mesma, a despeito de sua impressionante beleza física.
Esta saga é descrita em Hospício é Deus: por várias vezes Maura, ela mesma, por espontânea
vontade, buscou internações em hospitais psiquiátricos, alguns públicos e de
atendimento francamente desumano.
Não se trata de um simples livro: é um monumento!
Reynaldo Jardim, contemporâneo da autora, assim o
descreve:
“Este é um livro perigoso, feito para comprometer
irremediavelmente sua consciência. A tranquilidade dos que se julgam impunes e
lúcidos, dos que ainda não sabem, porque ainda não olharam par dentro de si
mesmos, que Deus também pode ser o Inferno, ou o Hospício.”
O relato contido no Diário
não interessa apenas aos profissionais da chamada área psi, muito embora
para eles a leitura deva ser obrigatória, penso eu; interessa a todo ser humano
que algum dia ocupou-se e se ocupa do mistério contido no funcionamento psíquico,
seja lá o nome que deseja dar ao fenômeno. A experiência relatada é pungente,
sofrida, tocante, angustiante, ninguém permanecerá indiferente a ela. Os
delicados tenham cuidado...
A par deste riquíssimo conteúdo, Maura é uma grande
escritora! Ela transforma desgraça em literatura, e o leitor não desgruda do
livro, até a última página. Alguns de seus contos foram publicados no
Suplemento Literário do Jornal do Brasil, órgão divulgador de cultura (onde compareciam
Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, Cony, e tantos outros craques da
nossa literatura), e de que não dispomos nos dias de hoje, não com aquela
qualidade.
Destaco
algumas frases do Diário:
“Como punir a inconsciência é
o que não entendo.”
“Viver esquizofrenicamente me
parece viver também; apenas esquizofrenicamente. A cada um seu papel.”
“Meus atributos só serão
totalmente reconhecidos por um homem superior. A cada gesto empresto certa
voluptuosidade, que não é voluptuosidade no sentido vulgar e até normal da
palavra. Sei tanto de mim mesma. E ignoram que eu saiba. Mas eles ignoram
tudo.”
“Não é somente em razão de
sua pouca cultura geral que se torna impossível para ele ser meu médico.”
“Agora compreendo que o
dinheiro suaviza tudo: até a loucura.”
“– Não dão ao louco nem o
direito de ser louco. Por que ninguém castiga o tuberculoso, quando é vítima de
uma hemoptise e vomita sangue? Por que os “castigos” aplicados ao doente mental
quando ele se mostra sem razão?”
Mais não desejo adiantar ao possível futuro leitor de
Maura Lopes Cançado, uma mulher extraordinária, autora de um livro extraordinário!
Em tempo: vale a pena ver o belo
e curto vídeo Hospício é Deus – Homenagem
a Maura Lopes Cançado, realizado por Jorge Lopes Cançado.
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