segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Maura Lopes Cançado




Não são poucos os relatos publicados em livros, efetuados pelos chamados “doentes mentais”, e em particular pelos esquizofrênicos, dada a excentricidade de seu modo de pensar, o que desperta curiosidade nas pessoas consideradas “normais”. Porém, na maioria das vezes, tais publicações pecam pela baixa qualidade literária, o que torna a leitura árida, cansativa, até impossível.
O mesmo não acontece com Hospício é Deus – Diário I, de Maura Lopes Cançado. O livro foi publicado pela primeira vez em 1965; esgotou-se e permaneceu fora de catálogo desde então. Agora a Editora Autêntica publica caixa com os dois volumes, incluindo O sofredor do ver (livro de contos), além do citado Diário (2015).
            Maura nasceu em São Gonçalo do Abaeté – MG, em1929, e morreu no Rio de janeiro em 1993. Filha de fazendeiro abastado, já na infância denotava comportamento errático, para dizer o mínimo, mimadíssima, perdidamente apaixonada pelo pai. Chegou a ganhar da mãe um Paulistinha, quando se exibia pela região como a única mulher capaz de pilotar uma avião. Em seguida vieram as crises epilépticas. Daí em diante, até a morte, a vida de Maura torna-se uma desgraça, para usar uma palavra dela mesma, a despeito de sua impressionante beleza física.
            Esta saga é descrita em Hospício é Deus: por várias vezes Maura, ela mesma, por espontânea vontade, buscou internações em hospitais psiquiátricos, alguns públicos e de atendimento francamente desumano.
            Não se trata de um simples livro: é um monumento!
            Reynaldo Jardim, contemporâneo da autora, assim o descreve:

“Este é um livro perigoso, feito para comprometer irremediavelmente sua consciência. A tranquilidade dos que se julgam impunes e lúcidos, dos que ainda não sabem, porque ainda não olharam par dentro de si mesmos, que Deus também pode ser o Inferno, ou o Hospício.”

            O relato contido no Diário não interessa apenas aos profissionais da chamada área psi, muito embora para eles a leitura deva ser obrigatória, penso eu; interessa a todo ser humano que algum dia ocupou-se e se ocupa do mistério contido no funcionamento psíquico, seja lá o nome que deseja dar ao fenômeno. A experiência relatada é pungente, sofrida, tocante, angustiante, ninguém permanecerá indiferente a ela. Os delicados tenham cuidado...
            A par deste riquíssimo conteúdo, Maura é uma grande escritora! Ela transforma desgraça em literatura, e o leitor não desgruda do livro, até a última página. Alguns de seus contos foram publicados no Suplemento Literário do Jornal do Brasil, órgão divulgador de cultura (onde compareciam Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, Cony, e tantos outros craques da nossa literatura), e de que não dispomos nos dias de hoje, não com aquela qualidade.


Destaco algumas frases do Diário:

“Como punir a inconsciência é o que não entendo.”

“Viver esquizofrenicamente me parece viver também; apenas esquizofrenicamente. A cada um seu papel.”

“Meus atributos só serão totalmente reconhecidos por um homem superior. A cada gesto empresto certa voluptuosidade, que não é voluptuosidade no sentido vulgar e até normal da palavra. Sei tanto de mim mesma. E ignoram que eu saiba. Mas eles ignoram tudo.”

“Não é somente em razão de sua pouca cultura geral que se torna impossível para ele ser meu médico.”

“Agora compreendo que o dinheiro suaviza tudo: até a loucura.”

“– Não dão ao louco nem o direito de ser louco. Por que ninguém castiga o tuberculoso, quando é vítima de uma hemoptise e vomita sangue? Por que os “castigos” aplicados ao doente mental quando ele se mostra sem razão?”

            Mais não desejo adiantar ao possível futuro leitor de Maura Lopes Cançado, uma mulher extraordinária, autora de um livro extraordinário!



Em tempo: vale a pena ver o belo e curto vídeo Hospício é Deus – Homenagem a Maura Lopes Cançado, realizado por Jorge Lopes Cançado.




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