segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Ser ou não ser...


O excelente Hélio Schwartsman, em crônica no sábado último na Folha de S. Paulo intitulada “Balbúrdia teológica” (1), defendeu a posição do Superior Tribunal de Justiça que inocentou de homicídio doloso o casal de pais, testemunhas de Jeová, que não autorizou transfusão de sangue em filha menor, que acabou morrendo. O articulista baseia-se no princípio de autonomia do paciente e seus familiares, o que significa para ele a resposta menos ruim nessas difíceis questões de bioética.
            Hélio afirma, e com razão, que o que define o dolo no homicídio é a intenção de matar. Evidentemente, este não se era o desejo dos pais da menina. E completa, com o brilhantismo de sempre:

“Não estou, é claro, afirmando que os pais agiram bem. Considero a ideia de que Deus não quer que transfundamos sangue uma tolice. Vou um pouco mais longe e afirmo que crer num papai do céu se encontra na mesma categoria. Mas, uma vez que nosso ordenamento jurídico permite e até incentiva a prática religiosa, é difícil sustentar que seguir um dogma equivalha a assassinato. E, depois que se aceita o vale-tudo dos discursos religiosos, não dá para dizer que a crença num Deus com pavor de transfusões seja objetivamente mais errada do que numa divindade que veta a contracepção ou que coleciona prepúcios. Só a autonomia confere alguma coerência a essa balbúrdia sanitário-teológica.”

            Agora, apresento para apreciação do leitor, uma situação específica, vivida por mim nos meus tempos de cirurgião. Já no centro cirúrgico de um determinado hospital, preparava-me para operar uma jovem com trauma abdominal, quando chega a notícia trazida por uma enfermeira, de que a família proibia que fossem feitas transfusões de sangue, pois eram testemunhas de Jeová. Logo que o abdome foi aberto, e constatada grande quantidade de sangue em seu interior, ocasionada por ruptura de baço, a paciente apresentou choque hipovolêmico – falência hemodinâmica, com pressão arterial próxima a zero, exatamente pela maciça perda sanguínea. Ou fazíamos a transfusão imediatamente, ou a paciente morria.
            Confesso que em momento algum aquela situação representou qualquer tipo de dilema para mim, seja ético, moral, religioso ou técnico-profissional. Várias bolsas de sangue foram transfundidas, o baço foi removido, com o consequente estancamento da hemorragia, a pressão arterial voltou ao normal, a paciente recuperou-se.
            Deixar que a paciente morresse naquela situação de urgência absoluta, quando não havia lugar e tempo para se discutir sobre o desejo da mesma ou dos familiares (o princípio da autonomia), pareceu-me uma alternativa impensável. Para mim, deveria prevalecer o primeiro princípio da Medicina, o da beneficência.
            Passado o episódio, ocorrido há muitos e muitos anos, restou-me um travo amargo na consciência. Para a pessoa que crê no pecado indelével que significa receber uma transfusão de sangue, o que a torna impura, para dizer o mínimo, para ela deve ser muito difícil conviver com o fato de ter recebido sangue estranho, para o resto da vida, penso eu. Mesmo que isso se constitua uma tolice, como afirma Schwartsman.
            O fato central de tudo isso, criador dos tais dilemas éticos, morais, religiosos, causador de tanto sofrimento, reside fundamentalmente na existência e prática do dogma, que por sua vez impede o ato de pensar, o que há de mais sublime no ser humano.

Um comentário:

  1. Há muitas situações que ultrapassam em muito o limite do sensato. Nessa hora, a gente age, pelo bem ou pelo mal. Depois vêm os dilemas. O único consolo é pensar que eles viriam, de qualquer modo, por aquela ou por outras razões. O homem adora um dilema...

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