O excelente
Hélio Schwartsman, em crônica no sábado último na Folha de S. Paulo intitulada “Balbúrdia teológica” (1), defendeu a posição do Superior Tribunal de Justiça que inocentou de homicídio doloso o
casal de pais, testemunhas de Jeová, que não autorizou transfusão de sangue em
filha menor, que acabou morrendo. O articulista baseia-se no princípio de autonomia
do paciente e seus familiares, o que significa para ele a resposta menos ruim
nessas difíceis questões de bioética.
Hélio
afirma, e com razão, que o que define o dolo no homicídio é a intenção de
matar. Evidentemente, este não se era o desejo dos pais da menina. E completa,
com o brilhantismo de sempre:
“Não estou, é claro, afirmando que os pais agiram bem. Considero
a ideia de que Deus não quer que transfundamos sangue uma tolice. Vou um pouco
mais longe e afirmo que crer num papai do céu se encontra na mesma categoria.
Mas, uma vez que nosso ordenamento jurídico permite e até incentiva a prática
religiosa, é difícil sustentar que seguir um dogma equivalha a assassinato. E,
depois que se aceita o vale-tudo dos discursos religiosos, não dá para dizer
que a crença num Deus com pavor de transfusões seja objetivamente mais errada
do que numa divindade que veta a contracepção ou que coleciona prepúcios. Só a
autonomia confere alguma coerência a essa balbúrdia sanitário-teológica.”
Agora, apresento para apreciação do leitor, uma situação
específica, vivida por mim nos meus tempos de cirurgião. Já no centro cirúrgico
de um determinado hospital, preparava-me para operar uma jovem com trauma
abdominal, quando chega a notícia trazida por uma enfermeira, de que a família
proibia que fossem feitas transfusões de sangue, pois eram testemunhas de
Jeová. Logo que o abdome foi aberto, e constatada grande quantidade de sangue
em seu interior, ocasionada por ruptura de baço, a paciente apresentou choque
hipovolêmico – falência hemodinâmica, com pressão arterial próxima a zero,
exatamente pela maciça perda sanguínea. Ou fazíamos a transfusão imediatamente,
ou a paciente morria.
Confesso que em momento algum aquela situação representou
qualquer tipo de dilema para mim, seja ético, moral, religioso ou
técnico-profissional. Várias bolsas de sangue foram transfundidas, o baço foi
removido, com o consequente estancamento da hemorragia, a pressão arterial
voltou ao normal, a paciente recuperou-se.
Deixar que a paciente morresse naquela situação de
urgência absoluta, quando não havia lugar e tempo para se discutir sobre o
desejo da mesma ou dos familiares (o princípio da autonomia), pareceu-me uma
alternativa impensável. Para mim, deveria prevalecer o primeiro princípio da
Medicina, o da beneficência.
Passado o episódio, ocorrido há muitos e muitos anos,
restou-me um travo amargo na consciência. Para a pessoa que crê no pecado
indelével que significa receber uma transfusão de sangue, o que a torna impura,
para dizer o mínimo, para ela deve ser muito difícil conviver com o fato de ter
recebido sangue estranho, para o resto da vida, penso eu. Mesmo que isso se
constitua uma tolice, como afirma Schwartsman.
O fato central de tudo isso, criador dos tais dilemas
éticos, morais, religiosos, causador de tanto sofrimento, reside
fundamentalmente na existência e prática do dogma, que por sua vez impede o ato
de pensar, o que há de mais sublime no ser humano.
Há muitas situações que ultrapassam em muito o limite do sensato. Nessa hora, a gente age, pelo bem ou pelo mal. Depois vêm os dilemas. O único consolo é pensar que eles viriam, de qualquer modo, por aquela ou por outras razões. O homem adora um dilema...
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