quinta-feira, 30 de setembro de 2021

Tudo é rio

 

 

Acabo de devorar Tudo é rio, livro de estreia de Carla Madeira, editado pela Record em 2014, agora em sua sexta edição (2021). Gostei muito.

            Intrigou-me o fato de que o livro não tenha sido tão ‘badalado’ desde a sua primeira publicação; se foi, houve um período posterior de silêncio, quebrado pela última edição. Resolvi pesquisar sobre alguma crítica, conhecer o ponto de vista profissional sempre interessante, vindo da polêmica figura do chamado crítico literário.

            Vejamos o que diz Luís Augusto Fischer, Professor de Literatura na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, para a Folha de S. Paulo, em junho do corrente ano:

“O silêncio permaneceu imóvel. O esquecimento começava a jogar seu manto. É destino da intimidade abrir passagem para a indelicadeza. A boca fez um silêncio delicado.

Essas frases são poéticas? Quem responder positivamente é o leitor certo para "Tudo É Rio", de Carla Madeira. 

As frases desse postulável teor poético estão espalhadas pelo texto todo, que encanta certo tipo de leitor (o mesmo que celebra Isabel Allende). Mas os personagens são muito próximos do "tipo", figuras com pouca densidade psicológica, e o romance resulta trivial. É um romance, com um nítido triângulo amoroso em seu centro, mas com estratégias de folhetim e um tempero de fábula.”

 

            Às tantas, Fischer ameniza, para atacar em seguida: “Madeira mostra domínio dos meios expressivos, na linguagem e nas variáveis estruturais da narrativa, que rendem passagens de discurso indireto livre muito bem construídas. Há também momentos em que um ou outro personagem ameaça se converter numa figura mais complexa, capaz de acrescentar à experiência da leitura mais do que o passatempo. Mas o domínio geral é do estilo folhetinesco, que será capaz de sustentar, quem sabe, uma série adulta bem filmada, a ser vista em maratona de fim de semana e logo esquecida.”

 

            O certo é que Tudo é rio, agora na sexta edição, não foi esquecido. Como Nelson Rodrigues nunca saiu de moda, com seus folhetins – às vezes sob o pseudônimo Suzana Flag –, publicados durante mais de dez anos no jornal Última Hora, e em livro, com título A vida como ela é...

            O Professor Fischer tem razão quando destaca as tais frases que ocupam todo o livro de Carla Madeira; isso pode ser cansativo em alguns momentos, talvez haja exagero; mas algumas delas são ótimas, feitas de palavras escolhidas a dedo, com cuidado e sensibilidade criativa. Grande número de escritores utiliza tal recurso; cito apenas o festejado Mia Couto, que de início talvez exagerasse, parecendo plagiar Guimarães Rosa; depois corrigiu. 

             Em tempo, uma observação e uma advertência: não gosto do estilo de Isabel Allende; quem não gosta de palavrão, melhor não ler o livro.

            Cito algumas dessas frases, para avaliação do meu eventual leitor:

“Uma guilhotina afiada corta as nossas mãos, e todas as rédeas escapam.”

“Ninguém monta na vida.”

“Brincamos de escolher, brincamos de poder conduzir o destino.”

“Que ruindade era aquela de pisar em ferida aberta?”

”Mas, se a bondade condenava sincera de um lado, a maldade acolhia o espetáculo.”

“O pior de nós tem seus encantos.”

“Dalva sempre começava soltando os cabelos como se precisasse se cobrir um pouco antes de ficar nua.”

            O que posso fazer é sugerir que leiam Tudo é rio: alguns vão gostar, outros nem tanto. “Pão ou pães, é questão de opiniães”, afirmou Guimarães Rosa.

            Ah!, a capa desta segunda edição está linda.





https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2021/06/tudo-e-rio-tem-trama-com-estilo-de-folhetim-e-tempero-de-fabula.shtml

 

quarta-feira, 29 de setembro de 2021

Fora com os missionários

 

“Fora com os missionários em terras de índios isolados”: a manchete de Hélio Schwartsman para a Folha de S. Paulo (27 set 2021) parece ter enfurecido a bancada da Bíblia no Congresso, também em guerra com o ministro Luís Roberto Barroso, do STF. Foi ele quem reafirmou decisão da corte, proibindo a presença de missões religiosas em território de índios isolados, durante a pandemia. 

A citada bancada afirma que a decisão é “orientada por ideologia declaradamente anticristã” e promove “perseguição religiosa”.

Replica Schwartsman: “Besteira. O Supremo não proibiu apenas missionários cristãos de contatar os índios, mas “quaisquer terceiros, inclusive membros integrantes de missões religiosas”. Na verdade, ao esclarecer o alcance da decisão, Barroso até que pegou leve com os cristãos, pois permitiu que as missões que já estavam nas aldeias antes da epidemia nelas permanecessem.”

O articulista da Folha reafirma sua posição : “Na minha modesta opinião, tratando-se de índios isolados ou semi-isolados, o correto seria proibir, em qualquer tempo, não só na pandemia, quaisquer contatos, principalmente os de missionários. Exceções só para emergências. Já o missionário, quando chega a uma aldeia, vai com o propósito específico de destruir a cultura local. Ele, afinal, dirá que tudo aquilo em que os índios sempre acreditaram está errado. E a morte da cultura, como sabemos, é o prelúdio do alcoolismo, do suicídio e outras mazelas que costumam afetar índios aculturados.” (Grifo meu.)

Shwartsman conclui corajosamente: “O Estado é laico, o que significa que, independentemente do número de deputados evangélicos, a crença em Tupã goza da mesma proteção que a crença no Deus cristão. Aliás, como Michael Shermer sempre lembra, nos últimos 10 mil anos, os homens produziram cerca de 10 mil religiões com ao menos mil deuses. Qual é a probabilidade de que Jeová seja o verdadeiro e Zeus, Baal, Brahma, Odin, Tupã e mais 994 sejam todos falsos?”

Ele está a falar do respeito às diferenças, apenas isso.

 

 

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/2021/09/fora-com-os-missionarios-em-terras-de-indios-isolados.shtml

 

terça-feira, 28 de setembro de 2021

Efêmero



 

Com a chegada das chuvas, numa manhã de céu azul e sol de primavera, plantei em meu jardim muda de ipê, alheio à sua natureza, se roxo, amarelo ou branco. Certeza mesmo, apenas que não o verei florir.

Isso fez brotar em mim sentimento de quase felicidade, leveza amena, meigo desprendimento, desapego enfim de saber o meu lugar na vida, no mundo.

Produziu em mim a calma de antecipar que a árvore há de florir na minha ausência e será grandiosa, admirada por todos que a virem, porque será bela e 

porque é árvore.

      A súbita percepção tornou a vida um rio fluido e fácil, a remover em seu caudaloso leito todo o peso da pedra, dos nós, das farpas e quinas, a lavar qualquer culpa ou responsabilidade por me saber passageiro, mais efêmero que o próprio ipê.

      Alguém há de cuidar que cresça forte e sadio a pequenina muda de ipê que plantei em meu jardim. Isso me basta, fiz o que pude.



segunda-feira, 27 de setembro de 2021

sábado, 25 de setembro de 2021

A Darwin o que é de Darwin

 

Em sua crônica de hoje (24 set 2021) para a Folha de S. Paulo, Na vacinação, a Darwin o que é de Darwin, Hélio Schwartsman encontra resposta para um enigma que tenho sido incapaz de decifrar, desde o início dessa pandemia. Por que algumas pessoas – e são muitas pessoas, no Brasil e no mundo! – não aceitam se vacinar contra a covid-19?!

            O país desfruta de reconhecida capacidade para vacinação em massa contra várias doenças, das quais se destaca a poliomielite, afecção gravíssima erradicada graças à imunização. Nos primeiros anos da Faculdade de Medicina aprendíamos que uma boa anamnese deveria conter o registro das chamadas ‘doenças comuns da infância’, que se tornaram cada vez menos comuns. Naquela época não se ouvia falar em recusa de vacinação.

            A imunização anual contra a gripe tornou-se rotineira entre nós, com resultados espetaculares, igualmente com pouca ou quase nenhuma recusa.

            Por que agora, diante de vírus altamente contagiante e muitas vezes mortal, considerável número de pessoas, mesmo em países ditos civilizados, com altos índices educacionais, esse tal negacionismo e a inaceitação da vacina? Dizem que a razão é ideológica. Que ideologia é essa, que mais parece suicídio? 

            Os judeus ortodoxos são contra a vacinação, mas não posso compreender que o D`us deles seja contra uma medida que vise preservar a vida. Soa mais como certo tipo de fundamentalismo, o religioso.

            No Brasil, tal ideologia parece estar ligada à extrema direita; igualmente me é incompreensível que determinada posição política seja contra a vida. Talvez se trate mesmo do fundamentalismo político, tão burro quanto o religioso. Em tempo: Todo Fundamentalismo É Burro.

            Antes que minha irritação aumente, vamos ao Hélio Schwartsman, que nos oferece brilhante explicação para tanta insanidade. Ao comentar o papel do Estado, que não deve utilizar de violência para obrigar pessoas a se vacinarem, ele assim termina sua crônica:

 

“O Estado deve oferecer e convencer. Na emergência, pode pressionar. Mas, a partir de certo ponto, a recusa obstinada deve ser interpretada como um autossacrifício darwiniano pela melhoria da espécie.”

            

            Portanto, a Darwin o que é de Darwin!

 

 

 

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/2021/09/na-vacinacao-a-darwin-o-que-e-de-darwin.shtml

 

sexta-feira, 24 de setembro de 2021

Área de Cerrado

 





Outra vez, capa de livro

Em 22 de dezembro de 2014 (!) este blogueiro publicou:

 

Capa de livro

 

 

uma bela capa

a flor rubra no jardim

chamariz de abelhas

 

 

Vendem-se livros principalmente por causa do autor, do conteúdo, do gênero, do título, mas também pela capa. A imagem da capa funciona como um chamariz, palavra oriunda do latim clamare, chamar, convocar, daí chamariz (1813), coisa que chama, que atrai, segundo Antônio Geraldo da Cunha, em seu Dicionário etimológico da língua portuguesa (Lexicon, 2007).

https://loucoporcachorros.blogspot.com/2014/12/capa-de-livro.html  A crônica é longa e pode ser lida no link acima.

 

            Comento sempre, ao postar resenha de algum livro, além do conteúdo, a arte da capa. Gosto disso. Houaiss registra o verbete capista: profissional que cria capas de livros, discos etc. Eu acrescento: um artista que cria capas... 

            Por quatro ou cinco vezes estive diante da tarefa de compor uma capa de livro, mesmo não sendo um artista, e asseguro que foram experiências interessantíssimas!

Hoje, ao terminar a leitura de O ar que me falta, de Luiz Schwarcz, editado pela Companhia das letras, 2021, não posso deixar de registrar minha enorme admiração pela capa do livro, de autoria de Alceu Chiesorin Nunes, um artista de primeira. 

 




 

            Simplicidade maior não pode haver; não há qualquer imagem; apenas duas cores, vermelho e preto, no fundo levemente amarelado. 

As palavras do título, em caixa alta, estão contidas em um retângulo de grossas linhas negras, que oprime, sufoca, faz faltar o ar. A palavra AR se destaca das demais pelo tamanho do tipo; para que o autor – o nome em vermelho no topo do retângulo – não corra o risco de morrer asfixiado, a perna da letra R escapa do retângulo, um respiro.

Abaixo, o longo e autoexplicativo subtítulo: HISTÓRIA DE UMA CURTA INFÂNCIA E DE UMA LONGA DEPRESSÃO, também em caixa alta.

O belo logotipo da editora, cujo editor é o próprio autor, ganha destaque na parte inferior da capa.

Belíssima capa!

 

Laerte ganha prêmio Juca Pato

 


Laerte na Marcha do Orgulho Trans de São Paulo (2019)
Dani Villar/Divulgação

 

“A cartunista Laerte Coutinho foi eleita a intelectual brasileira de 2021 pelo prêmio Juca Pato, da União Brasileira de Escritores, resultado anunciado nesta quinta-feira (23). A paulistana havia sido indicada ao troféu ao lado de nomes como os do escritor Carlos Nejar, da historiadora Lilia Moritz Schwarcz, da escritora Nélida Piñon e da repórter da Folha Patrícia Campos Mello.

Decana dos cartunistas da Ilustrada, a editoria de cultura da Folha, ela publica tiras diárias neste jornal há 30 anos.

Criado em 1962, o prêmio Juca Pato é entregue a autores que tenham publicado obras de sucesso nacional — em qualquer área do conhecimento — que contribuíram para o desenvolvimento do país e da democracia. O troféu premia anualmente um intelectual brasileiro que tenha se destacado.”


Sou fã!!!

 

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2021/09/laerte-recebe-o-trofeu-juca-pato-de-intelectual-do-ano-de-2021.shtml

Sempre idolatrado

Charge do dia


 Claudio Mor, para a Folha de S. Paulo

Estúdio de Matisse em Collioure


 

 

Estúdio de Matisse em Collioure, obra de Henri Matisse pintada na pequena cidade da costa mediterrânea da França, em 1905, vale a pena ser observada com cuidado e tempo, tantas são as informações nela contidas.

            Logo ao primeiro olhar distinguimos dois ambientes, o interior e o externo. Como o próprio título do quadro indica, trata-se do estúdio do artista; destacam-se na parede lateral à esquerda de quem olha, duas telas, em frente uma escultura sobre alto tripé a representar um casal, a face posterior de outra tela mais inferiormente (estará pintada?), e por fim, no chão, pequena vasilha com água. A parede está coberta de cores fortes, puras, primárias e secundárias: vermelho, verde, amarelo, azul, violeta, uma das principais características do fauvismo, movimento encabeçado por Matisse a partir de 1905. O mesmo ocorre com a parede à direita, onde estão dependuradas duas telas e logo abaixo uma espécie de móvel; o tampo azul contém pratos e vasos, o maior deles com flores que parecem fazer parte da tela acima; numa espécie de prateleira está a palheta do pintor sobre um livro (?) ou caixa de guardar tintas (?); rente ao chão, vaso com pincéis e outra tela. No canto inferior direito do quadro vemos parte de uma cadeira, com pequena caixa contendo material de pintura (?) sobre o acento de palhinha. O chão, em frente à porta, sobre um tapete repousa mesinha com vasos e plantas em florescimento. No piso predomina o vermelho vivo e o azul escuro.

            As duas folhas abertas da porta-janela ainda fazem parte do interior, porém já começam a revelar o que está fora: mostram o reflexo de céu, das palmeiras, do chão cor de areia, das construções na cidade. As partes mais inferiores de ambas as folhas deixam transparecer apenas as cores das paredes. Matisse não desperdiça espaço: procura captar o real em sua totalidade.

            A varanda, contendo dois vasos de plantas e delimitada por delicada grade, é espaço de transição entre o interno e a paisagem exterior.

            A partir daí, a cidade, o verde-mar, pequenos barcos espalhados pela areia (?), à esquerda pequena árvore sob a qual há mesas e cadeiras, será mesmo um navio o que se vê ao fundo?, o céu violeta, o reflexo nas nuvens da luz solar. A pintura é luminosa, fora e no interior do estúdio.

            A janela aberta tornou-se tema recorrente na obra de Matisse.

 

            Em tempos de pandemia, passo as manhãs em frente a uma janela – a tela de meu computador –, onde mantenho contato como o mundo exterior. Este mundo não é tão belo quanto aquele representado por Matisse; nele há fome, doença, morte, corrupção, desentendimento, muito ódio e pouco amor. A Arte me ajuda a suportá-lo.

 

quarta-feira, 22 de setembro de 2021

A viagem



 

No dia em que completava 75 anos, Adalberto embarcou pela primeira vez em um avião, presente de aniversário que ele mesmo lhe ofertava, depois de concluir que era uma vergonha chegar àquela idade sem nunca ter andado de avião: o destino, a bela cidade praiana que conhecera por fotografias em uma revista de turismo, e matava assim dois antigos desejos, andar de avião e conhecer o mar.

            Não tinha medo de avião, mas Adalberto não conseguia esconder a ansiedade desde que saíra de casa, já no taxi do amigo que fora escolhido com o propósito de incentivá-lo, de lhe emprestar coragem para a viagem, já que não aceitara a sugestão  de uma companhia, Se eu vivo só, que sentido faz viajar acompanhado?, retrucou, irritado com a observação de Jurandir, Pois então vá com Deus, Adalberto, vai dar tudo certo, era isso que ele precisava ouvir, Obrigado Jurandir, até a volta, você me pega aqui em uma semana, Combinado.

            O embarque ocorreu sem atropelos, a decolagem no horário previsto, uma aeromoça loura de olhos azuis ofereceu-lhe copo d’agua, ele aceitou, turbulência zero, Adalberto estava mesmo nas nuvens, além do que a aeronave chegou ao destino com dez minutos de antecedência, devido aos ventos favoráveis, anunciara o comandante.

            Já de posse da bagagem, uma única mala de tamanho pequeno que trazia na alça uma fita vermelha para que fosse facilmente identificada na esteira – conselho do experiente Jurandir –, Adalberto olhou para o grande relógio no saguão do Aeroporto que marcava onze horas de uma manhã luminosa, olhou para o movimento em volta, gente que ia e vinha, tornou a mirar o relógio, e então percebeu que não fazia a menor ideia de onde se encontrava, Estou perdido!

            Era difícil pensar, confusão era a palavra certa, no minuto seguinte o relógio marcava quinze minutos para o meio-dia, Aqui o tempo passa mais rápido? e permaneceu agarrado à alça da pequena mala, tentativa de manter contato com o mundo real, e nesse mundo de verdade Adalberto encontrou uma cadeira, sentou-se, procurou organizar os pensamentos, foi aí que percebeu que o sentimento dominante era o medo, muito medo, sem compreender bem do que sentia medo, se ainda era medo ou já era pavor, sim, era pavor de ficar preso naquele lugar sem água nem comida até a chegada da morte, e mais, seu cadáver jamais identificado, ad aeternum insepulto.

            O relógio, outra referência além da mala para com o mundo dos vivos, marcava agora dezesseis horas, o movimento das gentes permanecia o mesmo, Gentarada..., 

Adalberto grunhiu em voz alta, e foi aquele ruído, mais que a palavra, que chamou a atenção de Dona Beatriz, sentada bem em frente de Adalberto, que já vinha observando o comportamento daquele homem de olhar vago vazio, perdido no tempo, alheio ao espaço que o rodeava, e que de tempos em tempos dirigia o olhar para o relógio do saguão, buscando um sentido para o que estava vivendo, Ele não parece esperar pela hora do voo, mais parece estar voando, Dona Beatriz pensou e riu consigo mesma, ela que se considerava uma velha bem humorada.

            Quase todos os dias Beatriz, solitária senhora esperta e viva no esplendor de seus 71 anos, dava um pulinho naquele Aeroporto, só para ver gente, Ninguém me nota por aqui, pareço transparente, as pessoas estão muito ocupadas com a partida ou com a chegada, as primeiras seguem direto para o ponto de embarque, as segundas para a saída, donde concluo que este espaço é virtual, como gostam de chamar hoje em dia, ele não existe de fato, quem está aqui está em transe, não em trânsito como muita gente pensa, menos eu, que venho para observar as pessoas e me divertir sem que elas me percebam.

            Em seguida, séria, pensou, São os velhos que precisam cuidar dos velhos, e sentou-se ao lado de Adalberto, O senhor está bem?, Hã?, O senhor está bem?, Sim, E por que olha tanto para aquele relógio, Para saber por quê o Tempo está passando tão depressa, Boa resposta, o senhor está chegando ou partindo?, Como assim?, O senhor vem de, ou vai para algum lugar?, e pela primeira vez desde que chegara ele conseguiu reunir uns poucos pensamentos, ideias esparsas, permaneceu em silêncio por alguns minutos, a mulher esperou paciente pela resposta, Eu vim conhecer o mar.

            Muito bem, então acaba de chegar, e onde pretende se hospedar, Dona Beatriz perguntou, ela mesma achando que a pergunta era difícil para alguém tão confuso, Não faço a menor ideia, respondeu o velho, agora revelando-se menos ansioso, até achando uma certa graça na situação, o que animou Beatriz a decidir-se pelo que fazer, Pois vamos para minha casa, eu moro aqui perto, podemos ir a pé ou tomar um taxi, se o senhor preferir, Acho melhor o taxi, Então vamos, que o senhor deve estar com fome e eu tenho prontinha uma bela canja-de-galinha.

            A modesta aposentadoria de bibliotecária municipal e a vida regradíssima permitiam que Beatriz vivesse sem grandes sobressaltos, além da ajuda financeira que recebia da única filha, esta sim, bem de vida, morando em Portugal, membro da diretoria de importante multinacional, para quem a mãe mantinha arejado quarto de hóspedes, visita que recebia uma vez por ano, perto do Natal, e foi nesse quarto que ela instalou Adalberto, que até aquele momento não tinha se identificado, esqueceu o próprio nome enquanto permaneceu no Aeroporto, mas ao chegar em casa de Beatriz e pedir um copo d’água, Me chamo Adalberto, e a senhora?, Beatriz, muito prazer, sinta-se em casa, moro sozinha, e tirante o barulho dos aviões que agente acostuma, isso aqui é um sossego.

             Não se sabe se efeito da saborosa canja, o fato é que Adalberto acordou por volta das duas da tarde, ainda confuso, Bom dia, dormi muito, Boa tarde, que bom, daqui a pouco vamos almoçar, retrucou Beatriz, mais aliviada, havia pensado até em chamar um médico pois o homem não acordava nunca, mas agora era visível a melhora dele, movia-se com calma desenvoltura, A senhora, como se chama mesmo?, Beatriz, Ah!, e como vim parar aqui nessa casa, Em minha casa, Na sua casa, Viemos de taxi do Aeroporto, Sim, me lembro da chegada ao Aeroporto, havia um grande relógio que andava muito depressa, Beatriz quase soltou uma gargalhada, conteve-se, Passou, vamos tratar do presente, você pode me mostrar alguns documentos, o seu celular, voucher de algum hotel onde pretende se hospedar, qualquer coisa que sirva para compreendermos melhor o que está acontecendo?

            O senso prático de Beatriz colocou ordem na casa, tudo esclarecido, havia mesmo a reserva de hotel para uma semana, além do bilhete com o voo de regresso registrado no celular, Se não for incomodar posso ficar aqui mais um dia?, Pode ficar a semana inteira, se lhe aprouver, e se veio para conhecer o mar, amanhã, mais descansado, lhe apresento o Oceano Atlântico, ela bastante animada com a perspectiva de companhia por tantos dias, Você não teve medo de trazer para casa um completo desconhecido?, Não, eu gosto de gente, De gente doente?, Acho que você teve uma isquemia cerebral leve, sem qualquer paralisia, a fala preservada, pensei que aquilo ia passar logo, e veja como ficou bom só com uma canjinha, Foi a sopa mais gostosa que já tomei!

            Adalberto conheceu o mar-oceano, sentaram-se ambos diante da praia à sombra de uma antiga castanheira, beberam água-de-coco e conversaram, conversaram muito, do jeito que se deve conversar, cada um a escutar o outro e só depois falar, falaram de tudo, eram cento e quarenta e seis anos de experiências de vida, Beatriz contou como tinha sido viver entre os livros durante quarenta anos, Adalberto, orgulhoso, realizado, falou de toda uma vida como professor de português a ensinar em escola pública, Planta-se muito, colhe-se pouco, filosofou, Mas valeu a pena para uma alma que não é pequena, Gosta do Pessoa, Muito, e quando voltaram para casa a noite caía.

            Passada aquela mágica semana Beatriz afirmou, Felicidade é isso, e naturalmente, fez questão de levar seu hóspede ao Aeroporto duas horas antes do voo, caminharam até o portão de embarque em silêncio, despediram-se com um longo abraço e indisfarçáveis lágrimas  a marejar os olhos, prometeram continuar conversando todos os dias, agora pela Internet, até um novo encontro, dessa vez em casa de Adalberto, que jurou procurar um médico assim que chegasse, insistência de Beatriz, e quando ele desapareceu no longo corredor da área restrita aos que embarcavam, Beatriz sentou-se no banco de sempre e, invisível, voltou a observar as pessoas que iam e vinham, em transe, como gostava de dizer, e se divertiu.

            Jurandir esperava pelo amigo no local combinado, Salve salve Adalberto!, vivinho da silva com a ajuda de Deus, me conte como foi a viagem, Foi perfeita, Jurandir, conheci o mar e um oceano de emoções, mais tarde lhe conto, agora vamos para casa, depois de pegar o Camões que se encontra hospedado naquele hotel de cachorros, vamos vamos vamos...


segunda-feira, 20 de setembro de 2021

As damas de honra

Meus quadros favoritos


 Diego Velazquez, 1656

Homenagem ao Professor

Charge do dia


Aroeira 

Nossos ossos

 


 

Há pouca coisa tão viva nesse mundo quanto a Literatura. Ítalo Calvino explicou de forma detalhada e didática por quê devemos ler os clássicos, e ele estava certo. Acrescento eu, modestamente: porque a Literatura é um corpo vivo em evolução, é bom que acompanhemos também a produção literária contemporânea.

            Marcelino Freire é um belo representante da escrita coetânea. Publicou seu primeiro romance, Nossos ossos, em 2013, pela Editora Record. Uma segunda leitura, oito anos depois, ainda me surpreende e me alegra, especialmente pelo cuidado com a forma.

            Eis pequeno fragmento que ilustra a força da escrita de Marcelino:

 

“Estrela quando entrou a boate inteira parou, todo mundo a chamava de deusa, um grupo fez um círculo em torno dela, o palco ficava no chão, ela desfilava entre as mesas, boquiabertas, soltava a voz, não dublava, havia uma gravação apenas com instrumentos, eram dela, ao vivo, os gritos e trejeitos de Carmem Miranda.

            Por que as travestis se parecem comigo, pensei, Estrela era mais velha do que eu tinha imaginado, cheguei a apostar que fosse ela uma garota, sei lá, os peitos ainda estivessem no lugar, as roupas fossem mais modernas, no entanto ela era uma dama, uma cantora de rádio, enfeitada de plumas, subia as mãos ao céu, mostrava os anéis, os colares magníficos, as falsas pérolas.”

 

O livro todo é composto por três ou quatro parágrafos em cada página, todos apresentados em longos períodos, os diálogos sem qualquer preocupação com as convencionais marcas como maiúsculas, travessões ou aspas, o que empresta extraordinário dinamismo ao texto.

      Esta é uma opinião muito pessoal, estou certo de que não haverá de agradar a muitos. Tomo uma frase como exemplo: “Estrela quando entrou a boate inteira parou”: leio e releio essas palavras com enorme prazer, elas me soam como música!

      Na capa da primeira edição, a que disponho, a ilustração de Lourenço Mutarelli, que achei horrorosa; a intenção foi a de representar o título do livro, bastante interessante: Nossos ossos. 

Vale a pena conferir.

sexta-feira, 17 de setembro de 2021

Autumn Lights

Mulher lendo

 


John Ferguson Weir (1841-1926)


Mulher lendo

 

A mulher retratada durante o ato da leitura constitui um dos temas mais explorados pelos pintores de diferentes épocas, até os dias de hoje. Tais quadros muito me agradam, me emocionam mesmo, e descobri isso na Pinacoteca do Estado de S. Paulo, tempos atrás, ao contemplar o quadro de José Ferraz de Almeida Junior intitulado Leitura, de 1892.




 

Johannes Vermeer (1632-1675), requintado pintor holandês, pintou duas mulheres lendo cartas, o que é bem diferente de ler livros. Há quem afirme que a leitura de livros foi ato de rebeldia e libertação por parte das mulheres.

 




O mesmo quadro, depois
de polêmica e recente restauração.




Uma jovem lendo, de Jean-Honoré Fragonard (1769), portanto já no séc. 18, está exposto na National Gallery of Art, Washington, DC.

 


 

Exemplo de mulher que pinta a mulher lendo: Mary Cassat, pintora americana (1843-1926).

  



Quatro pinturas de Pablo Picasso, sobre o tema, em diferentes épocas e fases artísticas. 

 







           A lista é interminável, e as obras sobre o tema continuarão aparecendo neste blog.

 

No píer de Blanes

Meus quadros favoritos 



Vladimir Volegov (1957- )

 

 

Vladimir Volegov é um artista natural da Rússia, atualmente residindo na Espanha. 


Esta pintura inaugura no Louco por cachorros o marcador Mulher lendo.

 

Ninfeias

Meus quadros favoritos

Ao meu amigo Sergio Pripas 


Mary Sims (1947-2017)

primavera chegando



 

calor sufocante

inebriante perfume

manacá-de-cheiro

segunda-feira, 13 de setembro de 2021

Andrew Wyeth

Meus quadros favoritos 



Andrew Newell Wyeth (Pensilvânia, 1917 - 2009) foi um pintor realista estadunidense, também conhecido por fazer artes regionalistas. É um dos mais conhecidos pintores norte-americanos do século XX e algumas vezes é referido como o "Pintor das Pessoas", devido à sua popularidade com o público norte-americano. Ele é filho do ilustrador e artista N. C. Wyeth, e irmão do inventor Nathaniel Wyeth e do artista Henriette Wyeth Hurd, e pai dos artistas Jamie Wyeth e Nicholas Wyeth.”

quinta-feira, 9 de setembro de 2021

Mark Rothko

Meus quadros favoritos


Sem título, 1947 


“I'm not an abstractionist. I'm not interested in the relationship of color or form or anything else. I'm interested only in expressing basic human emotions: tragedy, ecstasy, doom, and so on.” 


Mark Rothko

quarta-feira, 8 de setembro de 2021

Sigmund Freud





“Aonde quer que eu vá, eu descubro que um poeta esteve lá antes de mim.”

 

                        Sigmund Freud

 

                        Leia mais Citações do autor no 

                        Blog do Moisés:

                        https://moisestitolf.blogspot.com/2021/09/sigmund-freud-1856-1939.html

 

 

Quando o roxo é alegria




quando a seca aperta
a viuvinha agradece 
e o roxo é alegria


Foto: AVianna, ago 2021.

Mapa topográfico da Itália



Itália 

Fotoabstração N. 77

 



Fotoabstração N. 76