terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Minha casa é um lago de água quieta e escura


Minha casa é um lago de água quieta e escura.
No fundo, há camadas de lodo antigo,
depositado ali desde tempos remotos.
Meus pés não alcançam 
o sumidouro poço vertigem.
Há poucos peixes nesse lago obscuro,
que ali pulsam suas guelras viscosas,
sem assomar à superfície,
sem se mostrar, afeitos ao desprovido de luz.
Minha casa é inabitável,
por ela transitam espíritos, 
antigas cenas constrangimentos estranhezas
arrependimentos segredos cansaços
risadas fantasias medos
muitas dúvidas e culpas.
Minha casa é líquida,
fluida inapreensível incolor
fumo no ar de uma tarde cinza.
Minha casa é feita de material reaproveitado.
Casa casulo teia toca ninho.
Aqui me puseram, aqui quedo.
Para todo o sempre.

                                   
Paulo Sergio Viana
                                   
Poema a ser publicado brevemente, 
no livro intitulado Esmo.

O tempo adiado




Vêm aí dia piores


Vêm aí dias piores.
O tempo adiado até nova ordem
surge no horizonte.
Em breve deves amarrar os sapatos
e espantar os cães para os charcos.
Pois as vísceras dos peixes
esfriaram no vento.
A luz da anileira arde pobremente.
Teu olhar pressente  penumbra:
o tempo adiado até nova ordem
desponta no horizonte.

Do outro lado afunda tua amada na areia,
ele sobe-lhe pelo cabelo esvoaçante,
ele corta-lhe a palavra,
ele ordena-lhe silêncio,
ele encontra-a mortal
e pronta para a despedida
depois de cada abraço.

Não olha para trás.
Amarra teus sapatos.
Espanta os cães. 
Joga o peixes ao mar.
Anula a anileira!

Vêm aí dias piores.


                                               Ingeborg Bachmann
                                               Escritora austríaca (1926-1973)
               Tradução: Claudia Cavalcanti


Poema publicado no caderno Ilustríssima
Folha de São Paulo (29 dez 2019)

Fará parte de antologia da autora intitulada O tempo adiado e outros poemas, Ed. Todavia, a ser publicado em janeiro de 2020.

domingo, 29 de dezembro de 2019

Trio para piano, antes e depois



Ao meu querido leitor Emerson


Não me canso de afirmar que não sou crítico musical; me faltam conhecimentos técnicos para tal. No entanto, gosto de registrar observações quase sempre sobre música erudita – que pretensão, meu deus! –, a música que costumo ouvir, irresponsavelmente. (Acontece que gosto muito de escrever.)
            Sabemos que há duas eras com relação à forma Concerto para Piano e Orquestra: antes e depois de Beethoven. Não há necessidade de explicações técnicas para compreender tal afirmativa; basta ouvir e comparar. E acrescento, “antes e depois” não se restringe ao desenrolar linear do tempo. Beethoven nasceu em 1770 e morreu em 1827; Chopin nasceu em 1818, portanto tinha 17 anos quando Beethoven morreu, e não aprendeu com o Mestre a arte do Concerto para piano. (São interessantes os dois concertos de Chopin – e ainda bastante requisitados pelo público –, mas pecam pela orquestração, já dizia minha mãe Ondina, que os ouvia sob restrições.)
            Bem, depois de ouvir o Trio N.2 em mi bemol maior D919, de Franz Shubert, um contemporâneo de Beethoven, interpretado pelo The Florestan Trio, com seus cinco movimentos, pensei em traçar o mesmo paralelo de excelência, comparando a forma Trio para piano a Beethoven. 
Para tanto, escolho o Trio para piano n.1, op. 70, em ré maior, de Beethoven. Desde o início do primeiro movimento a diferença é gritante: enquanto Shubert privilegia descaradamente o piano – sei que esta palavra há de chocar os puristas, mas como não sou crítico musical e adoro as palavras... – em  detrimento do violino e do violoncelo, Beethoven inicia seu trio com a voz do violino, belíssima, acompanhada do cello – e só depois entra o piano. Piano, violino e cello conversam todo o tempo, cada qual sabedor de seu próprio valor. E ele sabia disso.
No Trio op. 11, em si bemol maior, surge uma novidade: no terceiro movimento Beethovem apresenta um tema, “Pria ch’ l’impegno” sob a forma de Alegretto. Em seguida, ouvimos 9 variações curtíssimas, 30 a 40 segundos cada, sobre este tema. A peça termina com um Alegro. Fica evidente a intenção do compositor em desenvolver e expandir a forma Trio para piano.
Talvez os Trios para piano também possam ser divididos em “antes e depois” de Beethovem.

sábado, 28 de dezembro de 2019

Nova astrologia?





“Diga-me qual é o seu signo e eu te direi para onde ir de férias é o mais recente caça-cliques turístico. A obsessão com a estética das constelações vem sendo impressa tanto nas camisetas da marca Stradivarius (28 reais) como nos desenhos de Clare Waight Keller para a Givenchy (1.730 reais). A Goop vende garrafas portáteis com pedras de ametista dentro para se “beber água com boas vibrações” (360 reais). Este ano, na Urban Outfitters se destacaram os “geodos místicos” convertidos em práticos e decorativos suportes de livros (137 reais), mas ainda há estoque de velas e aromatizadores de ar para celebrar os solstícios (114 reais). A K-Hole, agência que prevê tendências, já antecipava em 2015 e acertou em cheio: aproximavam-se tempos de devoção à magia em várias subtendências, todas associadas ao esotérico e ao feminismo.” 
Assim tem início do esclarecedor artigo de Noelia Ramírez (26 dez 2019) para El País, intitulado O pujante negócio da astrologia contra o patriarcado. O feminismo exalta bruxas, horóscopo e memes num ramo que faz dinheiro com moda e consultoria pessoal em meio à incerteza social. Trata do novo consumo da astrologia, incluindo os aplicativos de horóscopo, com serviços personalizados diários e gratuitos, entre outros serviços pagos (mapa astral), viciantes e bem-sucedidos. 
“Como observou a jornalista Erin Griffith, em um artigo do The New York Times intitulado Investidores digitais estão pondo dinheiro em astrologia, o setor de “serviços místicos” tem um potencial comercial de 2,1 bilhões de dólares (cerca de 8 bilhões de reais), depois que o Co-Star, um aplicativo baixado por três milhões de usuários que permite comparar mapas astrológicos para que “a irracionalidade invada nossas formas de vida tecno-racionalistas”, captou cinco milhões de dólares (cerca de 20 milhões de reais) em investimentos de fundos de capital de risco do Vale do Silício.”
            Parece uma brincadeira! Para os consumidores, pouco importa que as informações recebidas tenham amparo científico ou não, trata-se de um paliativo mágico contra a ansiedade e o vazio, é como ir ao shopping e passar o dia a fazer compras. Não vale fazer a clássica pergunta Qual a diferença entre astrologia e Astronomia? A resposta baseada em fatos não interessa.
            Em outras palavras, a verdade não está em jogo. Por isso chamei de brincadeira, que rende bilhões ao espertos e emburrece os consumidores.
            O artigo de Ramírez termina com bela definição: “Passagem para o intangível, essa fuga no feminino para um pensamento mágico diante de uma tendência global de incerteza econômica e política.”
            É preciso combater a ignorância, sempre. Aos suscetíveis à “nova astrologia”, proponho o estímulo ao exercício de pensar. 



Danaë

Meus quadros favoritos



Gustav Klint

“Danaë é uma pintura a óleo sobre tela do pintor simbolista austríaco Gustav Klimt, datada de 1907, a Fase Dourada do artista. O tema da pintura, Danaë, esteve muito em voga no início da década de 1900 entre muitos artistas; a personagem foi utilizada como um símbolo de perfeição do amor divino, e transcendência.”

Wikipédia

Bonde numa rua da Praga

Meus quadros favoritos


Jakub Schikaneder

Pintor nascido em Praga, em 1855.
Morte, 1924.

quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

Maria

Galeria de Família





embora maria tenha lavado minhas fraldas quando nasci, pois não as havia descartáveis na época, no mês de janeiro mais chuvoso de que se tem notícia até hoje na capital, a primeira lembrança que dela tenho data de nossa mudança para a casa vizinha à casa de meus avós no interior, e eu já era bem crescidinho, e maria era empregada de breno e cici desde sempre, salvo antes de maria chegar à casa de meus avós, e aí residia o mistério.
            maria era cozinheira e a cozinha o seu reino. lá ela mandava e desmandava, escolhia os ingredientes no mercado municipal, carnes, verduras, legumes, frutas, os mais variados temperos, incluindo a pimenta malagueta, a indispensável banha de porco que emprestava sabor característico às comidas, estipulava ela mesma o cardápio da semana, às quartas pastel de queijo, carne, palmito ou frango, a especialidade dela, embora não fossem menos apreciados o torresmo, o feijão mulatinho, o bife acebolado às segundas, o frango ao molho pardo às quintas, o arroz soltinho todo santo dia. manjar de coco com ameixas, a sobremesa preferida da avó. no verão, sorvete de abacaxi. 
            não havia quem desconhecesse a infinita bondade de maria. analfabeta, meio índia, quase sempre coberta de andrajos, porém boníssima. chaninho, o seu gato predileto, com tinturas de angorá; havia outros, inúmeros, apareciam e desapareciam com o passar dos dias, apenas chaninho permanecia, alimentado com carde de primeira, para desespero de cici. quando alguma gata da rua dava cria, maria pegava os filhotinhos, enfiava-os num saco com uma pedra, jogava da ponte na correnteza do ribeirão dos alves.
            – coitadinhos, não terão o que comer, alegava pesarosa.
            havia, porém, um mistério: não se falava uma palavra sobre o passado de maria. anos mais tarde ouvi o comentário de que ela era filha bastarda de um irmão de meu avô, que então tomou para si a guarda da menina. 
hoje sei, também sou filho de maria, que me ajudou nos meus primeiros dias de vida. sem dúvida, faz parte da família.


Fotos: AVianna, Guaratinguetá, SP.

terça-feira, 24 de dezembro de 2019

Família vai à praia

Galeria de Família


Ofir possui um Renault Dauphine, criado pela montadora  francesa Renault em 1956; a versão brasileira foi fabricada sob licença da Renault pela Willys Overland do Brasil entre os anos de 1959 e 1968, donde se conclui que estamos em torno de 1960. A foto não mostra, mas o carrinho era amarelo cheguei, e chamava a atenção da cidade, Guaratinguetá, onde morávamos. 
               A família vai à praia, em Caraguatatuba, SP. Ofir resolve dar um pulo em Itanhaem, também cidade praiana de São Paulo, e posso identificar o local pela igrejinha.  
             As fotos falam por si. Todos muito sérios. O clima de sempre, céu carregado. Maria Helena, bem pequena, faz pose em quase todas as fotos.







Natal

Meus quadros favoritos



Marc Chagall

segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

They



A palavra they foi considerada pelos editores do Merrian-Webster, conceituado dicionário de língua inglesa, a palavra do ano. Vamos ver o que isso significa, se se trata de mera curiosidade linguística ou se tem alcance maior, a merecer nossa atenção. O dicionário registra: 

they
pronoun

\ ˈt͟hā  \
Definition of they

1 – those ones : those people, animals, or things.

2—used to refer to people in a general way or to a group of people who are not specified. 

3a—used with a singular indefinite pronoun.

b—used with a singular antecedent to refer to an unknown or unspecified person. 

c—used to refer to a single person whose gender is intentionally not.

d—used to refer to a single person whose gender identity is nonbinary. I knew certain things about … the person I was interviewing.… They had adopted their gender-neutral name a few years ago, when they began to consciously identify as nonbinary — that is, neither male nor female. They were in their late 20s, working as an event planner, applying to graduate school.— Amy Harmon

Estas são as definições para a palavra inglesa they, encontradas no referido dicionário. A definição 3d chama nossa atenção, até porque foi considerada pelos editores a palavra cujo uso mais cresceu em todas as mídias recentemente.
Vamos tentar uma tradução, e o leitor não espere vida fácil:

d– usada para se referir a uma única pessoa cuja identidade de gênero é não-binária.

Exemplo do uso: Eu soube certas coisas sobre... a pessoa que eu estava entrevistando... They adotou seu nome de gênero neutro há poucos anos, quando they tomou consciência de sua identidade não-binária – isto é, nem masculino nem feminino.
Exemplo de uso: They estava em seus tardios vinte anos, trabalhando como planejador de eventos, preparando-se para a graduação.

Em resumo, o pronome they, que sempre foi utilizado para designar plural, ganha novo significado ao apontar uma singularidade, o sujeito não-binário. Que seja do conhecimento deste blogueiro, não há tradução para they nesse sentido.
Interessante registrar ainda que em inglês o verbo vai para o plural; acho difícil imaginar que isso possa acontecer em português, quando penso que o verbo deve permanecer no singular, pois trata-se de uma única pessoa. 
Para quem ainda não conhece, vale a pena ver o vídeo do youtube, com o depoimento de uma pessoa que se autodenomina não-binária.



sábado, 21 de dezembro de 2019

Histórias breves





Com grande alegria recebo, com a devida dedicatória, Histórias breves de uma arte longa (Ed. Kiron, 2019), de autoria de Jordano Pereira de Araújo, médico interessado na História da Medicina e sobretudo em escrever, o que é bastante raro.
            Antes de mais nada, destaco a beleza do título do livro, verdadeiro decassílabo de poética sonoridade. São mesmo histórias curtas, variadíssimas, aleatoriamente apresentadas, que surpreendem o leitor a todo instante, ora pelo inusitado, ora pelo interesse que são capazes de despertar. 
            A escrita é correta, simples, direta, como quem deseja apenas contar um determinado fato sem rodeios ou floreios. Às vezes, uma pitada de humor. O livro é repleto de ilustrações, com as devidas referências; apresenta ainda uma bela capa.
            Li o livro do meu ex-aluno e ex-residente com enorme prazer! Parabéns, Jordano!

sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

Energúmeno e o ignorante


Devemos consultar sempre o dicionário!  É o que me aconselha meu irmão Paulo Sergio, escritor, poeta, conhecedor da língua mãe, e de quebra, mestre no Esperanto. Diante de certa declaração recente vinda de alta autoridade do governo, nominando Paulo Freire de energúmeno, só me restou ir aos dicionários. Energúmeno?
            Caldas Aulete registra: 
1. Ant. Pessoa possuída pelo demônio ou que age como um possesso; 2. Fig. Indivíduo não confiável, por ser desprezível e estúpido; BOÇAL.
O Priberam informa: 
1. [Antigo]  Pessoa dominada pelo .demônio. = POSSESSO; 2. [Figurado]  Pessoa que, dominada pela paixão, tem atitudes ou comportamentos excessivos.3. [Figurado]  Fanático intolerante.4. [Pejorativo]  Pessoa considerada ignorante ou muito básica. = BOÇAL
Dicionário Online português:   
[Antigo] Aquele que acreditava estar possuído pelo demônio; possesso. [Figurado] Sujeito sem conhecimento, que age como um boçal; imbecil, ignorante. Indivíduo que possui um comportamento descontrolado; quem se descontrola por excesso de paixão; desatinado. 
O Houaiss não podia faltar:
1(obsl.) possuído pelo demônio, possesso; 
2 (p.ext.) indivíduo que, exaltado, grita e gesticula excessivamente; 
3 (fig.) indivíduo desprezível, que não merece confiança; boçal, ignorante.
        No Dicionário Informal encontramos vários sinônimos para energúmeno: cabaço burro idiota possesso imbecil tonto panaca retardado doido inútil preguiço inerte fera xepa estúpido desnorteado tolo incapaz endemoninhado endiabrado energúmeno traquinas travesso fanático carola devoto exaltado jacobino furioso indignado iracundo possuído inútil  endemoniado mal caráter tomado envolvido puto ignorante jegue jumento anta estafermo estrupício cretino mentecapto apaixonado inergúmeno louco besta camelo calhau cavalgadura abécula alimária abantesma desequilibrado descontrolado desatinado arrebatado abestado inábil néscio lerdaço ineficiente disparatado asneirento.
Os demais dicionários consultados, incluindo o respeitadíssimo Laudelino Freire, registram praticamente os mesmos conceitos acima relacionados. Como não encontrasse significado algum que coubesse à ilustre figura de Paulo Freire, muito pelo contrário, só encontrei antônimos, concluo que o acusador não tem o hábito de ir aos dicionários, como recomenda meu irmão. Trata-se de um ignorante, no sentido mais simples do termo: aquele que ignora, que não sabe, e, pior, não busca saber. 



Ruth, Omair e um casamento feliz

Galeria de Família


Para nós, crianças criadas no interior, as visitas do Tio Omair e Tia Ruth, eram acontecimentos mágicos. 
            Relembro: Omair era o irmão mais moço de nosso pai, e Ruth a esposa dele. Para ir logo ao ponto mais importante da história, eles eram os únicos da família com curso superior, ambos químicos formados pela Universidade do Brasil. Pelo menos para mim isso causava um sentimento de respeito e admiração enormes. 
            Ruth e Omair viviam no Rio de Janeiro, cultivavam hábitos modernos, eram pessoas modernas, em comparação aos capiaus de Guaratinguetá. (Pronto, escrevi.)
            Eles eram afáveis no trato, a fala mansa, Tia Ruth tinha uma risada gostosa, mais alta, a boca aberta; não eram de muitas palavras, nunca pronunciavam uma fofoca; cultivavam a Alegria. 
            Por gentileza da Ruth, exponho em nossa Galeria a foto de ambos, a esbanjar alegria. Transcrevo algumas palavras de Ruth, no e-mail em que me enviou as fotos:
            
“Com a graça de Deus e a ajuda de parentes e amigos maravilhosos estou conseguindo conviver com a saudade imensa do Tio. Foram 61 anos de um casamento de muito amor, muito companheirismo e muita felicidade. Estou contribuindo com duas [fotos]: de um encontro da turma da faculdade, que realizávamos todo ano em diferentes hotéis, para o qual confeccionávamos blusas. ENQ (na manga ) significa Escola Nacional de Química (da antiga Universidade do Brasil ), hoje Escola de Química da UFRJ. A segunda dispensa apresentação e corrobora a beleza de nosso País.”

            Emocionantes as palavras da Tia Ruth. Muito obrigado por tudo, Ruth.



quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

Chiclete de 6.000 anos


O 'chiclete' vem do cozimento da casca de bétula.
THEIS JENSEN


“Uma espécie de chiclete de 6.000 anos ainda conserva a marca dos dentes de quem o mascava. Com isso, um grupo de pesquisadores pôde obter DNA humano, mas também o das bactérias que tinha na boca. E mais, conseguiram identificar um vírus que portava e até o que havia comido antes de mastigar a goma de mascar milenar. A garota (puderam determinar seu sexo graças à genética) tinha pele e cabelos morenos e olhos claros. Os pesquisadores a chamam de Lola.” É o que informa Miguel Ángel Criado (17 dez 2019) para El País.


Lola



terça-feira, 17 de dezembro de 2019

Nina Simone: saudade

A foto do dia




Nossa saudade.
Por ora, é o que podemos dizer.

Abuso sexual

Redação, Ansa e Reuters (17 dez 2019):

Papa abole 'segredo pontifício' em casos de pedofilia na Igreja.
Documentos promulgados por pontífice determinam que suspeitas de abuso sexual sejam comunicadas a autoridades civis.

Até que enfim!!! 

CIDADE DO VATICANO - O papa Francisco promulgou nesta terça-feira, 17, mudanças abrangentes na maneira como a Igreja Católica lida com casos de abuso sexual de menores de idade, abolindo a regra de "sigilo papal". Dois documentos emitidos pelo pontífice cobrem práticas que estão em vigor em alguns países, entre elas relatar suspeitas de pedofilia às autoridades civis quando exigido pela lei. 
Os documentos também proíbem que se imponha uma obrigação de silêncio àqueles que relatam abusos sexuais ou alegam ter sido vítimas. 


domingo, 15 de dezembro de 2019

Etimologia


no suor do rosto
o gosto
do nosso pão diário

sal:  salário



                     José Paulo Paes
                     em tempo escuro, a palavra (a)clara
                     Global, 2007.

Escolha definitiva




Aos 19 anos José Mário conseguiu juntar um dinheirinho, sobras daqui e dali, e resolveu experimentar algo inédito em sua curta vida, dar-se um presente. (Naquele instante talvez ele começasse a gostar de si mesmo.) 
            Pela primeira vez experimentou o dilema de quem nunca havia juntado qualquer soma de dinheiro e muito menos tivesse o desejo de transformar isso na aquisição de algum bem material. Comprar o quê? Queria mesmo uma máquina fotográfica Nikon, porém o dinheiro dava apenas para um LP. Precisava então escolher um LP.
            Sob forte influência materna, José Mário se interessou por música erudita; os clássicos Bach, Mozart e Beethoven moldaram seu gosto desde o início. Bom começo. Depois apaixonou-se por Erik Satie, mas isso foi bem depois, melhor não atrapalhar o desenrolar da história.
            No centro da cidade do Rio de Janeiro, mais precisamente no Largo da Carioca, nos idos dos anos 60, havia uma enorme loja de discos no térreo do Edifício Central, com vastíssima coleção de clássicos, além dos populares. José Mário entrou na loja com o coração batendo forte. Analisou com cuidado a prateleira de Bach, Mozart e Beethoven, encantado com a diversidade de gravações, com os álbuns caprichados, nas contracapas uma pequena biografia do autor, o resumo sobre a importância daquela obra específica, dados sobre a orquestra ou sobre o intérprete, um mundo de informações que José Mario devorava sem pressa, havia tirado folga naquela tarde de quarta-feira. Escolheu os Concertos para trompa de Mozart. Grande escolha! 
            José Mário envelheceu ouvindo música erudita. Adquiriu respeitável coleção de CDs, e nas manhãs de domingo ouvia infalivelmente as Valsas nobres e sentimentais, de Ravel; depois de alguns anos, estas foram substituídas pelo Requiem, de Mozart. Para ele, réquiens, missas, qualquer que fosse a música sacra, não significavam pesar, luto, tristeza, nada disso, ele as ouvia com o encantamento de sempre.
            Eram fases, como ele mesmo dizia, Agora estou na fase do estoniano Arvo Pärt, e ouvia o mesmo compositor durante meses. Houve tempo em que parou nos Noturnos, de Chopin; colecionou 11 gravações diferentes, na tentativa de definir sua preferida. Parou também em Stravinski e Shostakovitch, semanas ouvindo The Jazz Album, deste último. Longa foi a fase Villa-Lobos; depois de ouvir quase tudo, parou nas Bachianas, e de lá voltou às Suítes para violoncelo de Bachem particular à de número 6, lembrando sempre que o irmão preferia a de número 1, e de tanto ouvir Bach e Villa, já não sabia mais o que era de Villa e o que era de Bach, bela fusão musical, diriam os menos ortodoxos. Demência, diriam os racionais. José Mário expandiu seu gosto pela música a ponto de gostar do fantástico Quarteto de cordas e quatro helicópteros, de Karlheinz Stockhausen.
            José Mário continuou envelhecendo e com a velhice chegou uma certa surdez, que fez com que o volume do amplificador fosse paulatinamente aumentado, chegando a incomodar vizinhos e própria esposa, Abaixa isso, José Mário, que não tem ninguém surdo por aqui, esbravejava ela. Impossível saber se este fato foi determinante nos acontecimentos que agora passo a narrar.
            De repente o próprio José Mário notou que nas últimas semanas ouvia apenas as Sonatas para piano n. 30, 31 e 32, opus 109, 110, 111, de Beethoven, sempre nessa ordem, certo de que elas compunham uma única peça musical, a mais linda de todos os tempos, finalizada pelo segundo movimento da sonata n. 32, opus 111, descrita como Arietta: Adagio molto semplice e cantabile, música do futuro capaz de levá-lo às nuvens, ao céu, ao paraíso enfim, na interpretação de Alexandre Tharaud. 
            Já com a voz enfraquecida por um tosse crônica, José Mário confidenciava à esposa que sentia muito que a maior parte da humanidade nunca tivesse vivido a experiência de ouvir aquelas sonatas, uma vez na vida que fosse. Talvez elas pudessem ter mudado o mundo para melhor. A força de Beethoven.
            José Mário morreu em paz, ouvindo as Sonatas para piano n. 30, 31 e 32, de Ludwig van Beethoven, em uma tarde de fim de primavera.
            
            

sábado, 14 de dezembro de 2019

Obra de arte mais antiga


 

Um búfalo-anão rodeado de figuras antropomorfas
Ratno Sardi


Obra de arte mais antiga da humanidade é descoberta na Indonésia.
Cena de caça pintada há 43.900 anos pode ser a primeira narração humana conhecida, milênios antes do ‘homem-pássaro’ de caverna francesa. É o que informa Nuño Domínguez (12 dez 2019), para El País.
“Em dezembro de 2017, um homem chamado Pak Hamrullah descobriu a entrada de uma caverna desconhecida em um penhasco da ilha de Sulawesi (também conhecida como Celebes), Indonésia. Subiu por uma figueira até alcançá-la e ao chegar ao fundo avistou uma cena de caça pintada em uma tela de rocha de mais de quatro metros de largura. Após dois anos de estudos, a equipe de arqueólogos que acompanhava Hamrullah naquele dia afirma que essa é a obra de arte figurativa mais antiga do mundo.” 
“O único autor possível dessa surpreendente obra é o Homo sapiens, nossa própria espécie, que chegou a essas ilhas do sudeste asiático entre 40.000 e 50.000 anos atrás.” 
“Não queremos substituir um centro de origem por outro no sudeste asiático”, diz Brumm, “mas é muito interessante encontrar arte rupestre mais antiga do que a europeia”. “Isso nos obriga a nos perguntar se os humanos modernos desenvolveram a capacidade artística quando saíram da África [há 70.000 anos]”, acrescenta. Até agora foram encontradas em Sulawesi mais de 200 cavernas e abrigos com pinturas rupestres. De acordo com Brumm, a cada ano sua equipe encontra “dezenas de novas pinturas rupestres com imagens de todos os tipos”. 
O mais interessante da história é que esta não é a última palavra sobre o assunto.



terça-feira, 10 de dezembro de 2019

História de um casamento




Impossível não associar o atual História de um casamento, de Noah Baumbach, ao filme de Ingmar Bergman, de 1974, Cenas de um Casamento. Ambos tratam do difícil comportamento humano a dois, ainda mais complicado pela presença de um terceiro sujeito, o filho, cuja guarda é disputada em tribunal, na história de Baumbach.
            Na postagem anterior deste blog, Mães “Virgem Maria”(http://loucoporcachorros.blogspot.com/2019/12/maes-virgem-maria.html), damos destaque ao monólogo da advogada da esposa e mãe, ao planejar o discurso no tribunal, no julgamento do divórcio. Agora falaremos do problema do pai. Diz a advogada (laura Dern, em interpretação digna de Oscar):

“O conceito de um bom pai só foi inventado há uns 30 anos. Antes era normal que os pais fossem calados, ausentes, pouco confiáveis e egoístas. É claro que queremos que eles não sejam assim, mas no fundo nós os aceitamos. Gostamos deles por suas imperfeições, mas as pessoas não toleram essas mesmas coisas nas mães. É inaceitável em nível estrutural e espiritual. Porque a base de nossa conversa judaico-cristã é Maria, a mãe de Jesus, que é perfeita.”

            Como pai de duas filhas, devo admitir que esta fala me tocou profundamente. Penso que não estamos a tratar propriamente de pais, e sim de homens. Os homens, na sua soberba de ser mais forte e dominante desde sempre, permitiram-se calados, ausentes, egoístas, eles em primeiro lugar, depois mulher e filhos. Não estou a falar nenhuma novidade.
            Em História de um casamento, o pai ausente apresenta mil justificativas para tal, direitos adquiridos pelo homem, que o tornam acima do bem e do mal. Ou simplesmente a manifestação do exuberante narcisismo.
            A seu favor, do pai, em meu modo de ver – e isso é discutível – ele ama a esposa e o filho, daí tanto sofrimento diante da separação. Parece que tanto amor não basta! Há certas atitudes que contam muito, e que devem ser consideradas cuidadosamente pelo pai real. Uma delas, talvez a principal, seja considerar a esposa e os respectivos desejos e direitos dela. (O que vale também para a esposa.)
            Para expressar tais ideias o filme é repleto de longos diálogos em ambientes fechados, a câmera quase parada – Bergman fala! – a beirar a monotonia, como se assistíssemos a uma peça de teatro. Ao final do filme há um diálogo que beira a morte, o casal movido pelo ódio irracional, cruel e desumano, onde Scarlett Johansson e Adam Driver  brilham intensamente, emprestando ao filme excepcional destaque.
O filme é tocante e doloroso, pelo menos o foi para mim. Um grande filme, cuja profundidade e detalhamento dificultam em muito a análise por parte deste crítico amador. Agora resta rever o mestre Bergman.


Mães "Virgem Maria"




No momentoso filme História de um casamento, do diretor Noah Baumbach, Nicole (Johansson) e sua advogada Nora Fanshaw (Dern), combinam estratégia para declarar diante do tribunal, no caso de divórcio e guarda do filho pequeno. Nicole, a mãe, pensa em declarar que costuma beber de vez em quando uma taça de vinho; pretende confessar também que às vezes insulta o filho, quando ele passa dos limites. A advogada então a adverte, em monólogo memorável!

“Vou te interromper aqui. As pessoas não toleram mães que bebem e dizem ao filho: ‘idiota’. Eu entendo, também faço isso. Nós podemos aceitar um pai imperfeito. O conceito de um bom pai só foi inventado há uns 30 anos. Antes era normal que os pais fossem calados, ausentes, pouco confiáveis e egoístas. É claro que queremos que eles não sejam assim, mas no fundo nós os aceitamos. Gostamos deles por suas imperfeições, mas as pessoas não toleram essas mesmas coisas nas mães. É inaceitável em nível estrutural e espiritual. Porque a base de nossa conversa judaico-cristã é Maria, a mãe de Jesus, que é perfeita. Ela é uma virgem que dá à luz, apoia incondicionalmente o filho e segura seu cadáver quando ele morre. O pai não aparece. Nem apareceu para a trepada. Deus está no céu. Deus é o pai e Deus não apareceu. Você tem que ser perfeita, mas Charlie pode ser um puto desastre. Você sempre será colocada no nível mais alto. Você é uma fodida, mas é assim que é.” 

Prossegue NOELIA RAMÍREZ em seu artigo História de um casamento ou a síndrome das mães ‘Virgem Maria’, para El País (9 dez 2019):

“A invenção do mito da “mãe virgem” é um clássico que se reproduz repetidamente em culturas isoladas, como recorda Katixa Agirre no recente Las Madres No (Transit, 2019), onde destaca outras referências históricas sobre este arquétipo. A autora lembra que na mitologia grega já se estabelece uma moral similar sobre a história da virgem Atenea, deusa da sabedoria e da guerra, que engravida depois que Hefesto ejacula em suas roupas e ela, com nojo, joga os restos de sêmen no chão, de onde nasce Erictonio. Maia, mãe do Buda, também concebeu o filho castamente em um sonho. Coatlicue, deusa asteca, ficou grávida enquanto varria e penas caíram do céu para que gerasse, sem pecado, um deus mexica, Huitzilopotchi. Na tradição persa, Anahita também gestou um deus, Mithras, sendo virgem.”

            Há treze dias este blog publicou o texto Sincretismo religioso, (http://loucoporcachorros.blogspot.com/2019/11/sincretismo-religioso.html) inspirado em publicação de Leandro Karnal, na qual o historiador afirma:

“Maria passou a ser cultuada em Éfeso, mesmo lugar do culto a Diana/Ártemis, uma entidade sempre virgem. A fusão de deusas-mãe do Crescente Fértil com a figura de Nossa Senhora foi bem documentada. Em alguns casos, transforma-se o lugar: o Partenon de Atenas, consagrado a outra virgem, Palas-Atena / Minerva, virou igreja de Nossa Senhora. Dogmas marianos foram proclamados em Éfeso e o processo de construção da imagem de Maria vai até o século 20 (dogma da Assunção). Nascer de uma virgem é comum a Mitra e a Jesus. Ressuscitar é lembrado como atributo de Osíris e Cristo.”

A conclusão a que se pode chegar é que tudo é sincretismo, mistura  de diferentes culturas e muitas tradições, incluindo o processo de criação de Deus ou de Maria. Karnal enfatiza:  “Não existe uma religião original e pura ou uma fonte primária. Religiões funcionam como cebolas com muitas camadas e, enfim, depois de retiradas, inexiste uma essência primeira. Sincretismo é a base de todas as culturas...”

O provocante filme História de um casamento traz inúmeros outros aspectos a serem debatidos, incluindo aquele do “pai ausente”. Voltaremos a eles nesse blog.