De antemão posso assegurar ao meu eventual leitor que os acontecimentos que passo a narrar são absolutamente verídicos e isentos de qualquer dose de ficção e que esta afirmação é endereçada principalmente a mim mesmo pois custo a acreditar no ocorrido tanto mais ele me retorna à mente – uma lembrança recorrente de quem parece recusar-se a encarar a verdade.
Meu irmão, e aí reside a chave do problema – trata-se do meu irmão –, chegaria de São Paulo às onze e trinta da noite de uma sexta-feira para passar conosco o fim de semana. Minha agitação começou há duas semanas, de modo que um tempão antes da hora marcada já me encontrava no aeroporto, de olho no painel Arrivals.
E o painel anunciou a confirmação da chegada dentro do horário previsto!
Tudo bem, agora é esperar, mas eu não conseguia tirar os olhos da porta de desembarque, dos passageiros que chegavam em voos anteriores. Meu olhar desviava-se alternadamente dos passageiros que cruzavam o portão para o painel que marcava a chegada dos voos e ao relógio do meu celular. No painel, o voo do irmão sempre CONFIRMADO. Mesmo assim, minha ansiedade aumentava a cada minuto.
Landed. Pronto, pousou, agora o olhar não mais se desvia do portão de desembarque, cada face que passa é escrutinada pelo meu complexo retina-cérebro, o coração acelera, a respiração ofegante, a impressão é que aquele desfile de rostos desconhecidos não acaba mais, até que reconheço o irmão. Nos abraçamos efusivamente.
A primeira conversa é sempre a mesma, O voo chegou cinco minutos adiantado, Então foi bom eu chegar mais cedo, A que horas chegou?, Há quinze minutos (mentira), Ótimo voo, Cansado?, Nada, Deixa eu pagar o estacionamento, mas antes preciso avisar em casa que você chegou, para que o bacalhau vá para o forno.
E passo a procurar um caixa eletrônico para o pagamento. O primeiro, fora de serviço; o segundo funcionando, lugar escuro, quase meia-noite, leio as instruções com certa dificuldade, coloco o cartão do estacionamento, depois o meu cartão de crédito, senha, sai o comprovante, retiro meu cartão de crédito e vamos embora.
Então a saga tem início. Andamos quase até o fim do estacionamento e nada de encontrar o carro. Olho de um lado, olho de outro, ando pra-lá-e-pra-cá, encontro-me numa área praticamente deserta, não vejo meu carro e nenhum outro carro, sensação estranha, não sei onde estou, estou perdido, quase pânico, ROUBARAM MEU CARRO!
Tive a impressão de que o irmão não se impressionou com a retumbante frase, não se abalou nem um pouquinho, como quem não acreditasse no que estava ouvindo, e isso me afetou. Talvez o carro esteja aqui, eu é que não o encontro, pensei, e meu irmão já sabe disso, pensamento que me acalmou. (Liguei para avisar que íamos nos atrasar para o jantar.) Então pude analisar com mais calma a topografia do enorme estacionamento de aeroporto e percebi que estava no lugar errado. (O irmão colocou a mochila no chão e permaneceu calmo imóvel impassível durante todo esse tempo.)
Ufa! Encontrei o carro. Bagagem no porta-malas, nos acomodamos aliviados, dei a partida em direção à saída, não sem antes ligar para casa e avisar minha mulher que agora estávamos saindo do aeroporto. Parado em frente à cancela, onde o cartão do estacionamento? PERDI O CARTÃO DE ESTACIONAMENTO. PUTA-QUE-O-PARIU!
Confesso, estava à beira de um surto psicótico. Havia também o constrangimento de obrigar o irmão a passar por todo aquele vexame. A vontade era de arremessar o carro contra a cancela, arrebentá-la, ir para casa, terminar com aquele suplício. Uma câmera bem postada dizia-me que aquela era outra má ideia.
Procurei o guichê onde havia um funcionário com quem pudesse conversar, expliquei o caso, a senhora que me atendeu pediu documentos, identidade, carteira de motorista – parecia coisa séria –, paguei multa, recebi outro cartão para a saída, liguei de novo para casa para avisar que houve um contratempo, mas que chegaríamos em breve. (O irmão aventou a hipótese de que o cartão do estacionamento ficara esquecido na máquina de pagamento eletrônico, hipótese tão provável quanto inútil naquele momento, atestando apenas mais uma falha de minha memória.) A esta altura eu estava exausto e meu irmão visivelmente espantado com tamanha confusão. Sobre o que pensou sobre tamanho desvario, jamais me disse.
Em pouco mais de meia hora estávamos jantando a ótima comida preparada por minha mulher, acompanhada de um bom tinto, e pouco se falou sobre o acontecido, que não me sai da cabeça decorrido mais de ano. Uma lembrança recorrente de quem parece recusar-se a encarar a verdade? Medo do tal alemão? Quem sabe este registro – mais uma vez a escrita terapêutica! – possa aliviar o pesadelo.
Isso me traz uma lembrança de infância. Numa festa de aniversário, quando eu tentava voltar ao salão principal, dava sempre com um cômodo vazio e meio sinistro. Parece que perder e perder-se é muito humano...
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