Querido Dr. Alberto,
sei que demoro a responder sua cartinha
de janeiro deste ano, mas não é por falta de atenção e carinho, pois você não
me sai da lembrança e ainda permanece como meu melhor amigo!
Infelizmente,
escrevo numa situação difícil, angustiosa, conflitante, que contando ninguém
acredita, e acho que esta carta faz parte daquilo que você chama de escrita
terapêutica. Um pouco cansada do trabalho, o serviço de sempre, que eu até
gosto, especialmente quando se trata de cortar cabelo de homem, resolvi tirar
uma férias, aceitei convite de uma amiga para hospedar-me na casa dela, com
direito a praia e tudo. Você só não imagina o lugar: VITÓRIA, Espírito Santo!
Resultado:
estamos presas em casa, somos reféns dos bandidos – eles soltos, nós
trancafiadas –, então tenho tempo para lhe escrever, mas não sei quando vou
poder colocar esta carta nos Correios. Alberto, foi só a Polícia fazer greve e
a população enlouqueceu. Vizinhos da minha amiga, aparentemente decentes, saem
à rua de carro, param em frente a um supermercado e assaltam, isso mesmo, assaltam, (aprendi a usar o negrito com o André, acho bacana, é gritante!),
roubam comida, bebida, roupas, utensílios domésticos, tudo que encontram pela
frente, uma loucura. No dia seguinte repetem a cena, agora diante de uma loja
de departamentos, levam tevês, micro-ondas, celulares, tablets, cosméticos
caríssimos, enchem o carro e saem correndo, em meio a uma multidão que faz a
mesma coisa. Acho até que há uma espécie de solidariedade entre eles, eles se
apoiam, tipo temos permissão, sei
lá.
O
sentimento é aterrador, Alberto.
Tempos
de barbárie.
Ou
sempre foi assim?
Retira-se
a repressão, surgem as hordas.
Inferno.
Ontem,
minha amiga precisou ir à farmácia, padecia de dor de ouvido, uma dor horrível,
diga-se de passagem, a dois quarteirões daqui, e na volta foi assaltada:
levaram-lhe o celular e a correntinha com pequena imagem de Nossa Senhora de
Fátima, sem qualquer valor pecuniário, apenas valor sentimental, pois fora
trazida de Portugal, mais precisamente de Fátima, mas que não foi capaz de proteger
Clotilde, minha amiga, do assalto. Um horror! Ah!, os bandidos levaram também o
remédio para dor de ouvido. Você acredita, Alberto?! (Mas Clotilde disse que
podia ter sido pior, podia ter sido estuprada ou morta, ou as duas coisas, e
que foi salva por Nossa Senhora de Fátima! Nem vou perguntar se você
acredita...)
Ouço
pela tevê que até agora ocorreram 90 homicídios! No Instituto Médico-Legal de
lá os cadáveres estão espalhados pelos corredores. Então é assim? A Polícia faz
greve e as pessoas começam a se matar umas às outras? Passam a acertar as
contas? Meu deus (deus com minúscula, isso também copiei do André, mais
conhecido por Louco, por causa do blog), pertenço também a esta mesma humanidade?
De que matéria somos feitos?
Alberto,
não tenho respostas, apenas perguntas.
É
a evolução das espécies ainda em seu princípio?
É
o bicho dentro de nós?
Mas
bichos não saqueiam. (Mas roubam galinheiros.)
Bichos
não cometem assassinatos.
Cortar
cabelo é mais fácil.
O
André recomendou no blog dele um livrinho de uma tal de Ana Luisa Escorel
(filha daquele crítico literário famoso, agora me esqueço o nome, depois eu
lembro) chamado De tudo um pouco,
muito lindo, e que contem um conto chamado O
fastio do diabo, uma verdadeira obra prima. Eis o que diz o discípulo do
diabão chefe, dirigindo-se ao Mestre:
“...trata-se de um lote de terra incomensurável, praticamente um
continente, dada a extensão, e tem um solo privilegiado no qual, de alto a
baixo, ‘em se plantando, tudo dá’, conforme eles mesmos costumam dizer. O
diabo, opss! perdão, Mestre, é o hábito depois de tanto tempo entre os
habitantes daquela região... Quero dizer, o problema é a maneira como essa
dádiva foi e continua sendo tratada porque a terra permanece de uma fertilidade
impressionante num clima perfeito. Mas tanto se a maltratou, tanto se queimou a
mata, tanto se emporcalhou tudo quanto foi rio, tanto se dizimou campo e
floresta, tanto se incomodou o mar, tanto se matou bicho de todas as espécies,
tanto se pescou de forma indiscriminada, tanto se cavucou o chão atrás de
minério precioso que agora os desequilíbrios são evidentes, muitos,
irreversíveis.”
Puta
que pariu, Alberto! Não é perfeito? Nem é preciso dizer de que país se trata. E
o discípulo do Caramunhão informa ao Mestre que ele nem precisou fazer força
para que tais descalabros ocorressem, os nativos mesmo se encarregaram do
emporcalhamento desde que a terrinha foi descoberta há pouco mais de 500 anos.
É da natureza deles, acrescentou.
Será
isso, Alberto? Será mesmo da nossa natureza? Será que isso acontece na
Escandinávia? Ou na Islândia?
Acho
que agora você percebe que se trata sim de escrita terapêutica; minha angústia
está demais; me desculpe o desabafo; não desejo abusar de sua paciência para
comigo. Eu queria apenas uma semana de férias, passear, curtir uma praia, em
companhia de minha amiga Clotilde. Era pedir demais? (Uma vez cortei cabelo de
um homem já bem velho que, logo ao entrar no salão, sem mais nem menos, antes
de um bom-dia, foi logo dizendo Boa romaria faz quem em sua casa fica em paz. Na
época, até assustei. Agora, aplica-se a mim o ditado.)
Meu
querido Alberto, enviaram para cá tropas do Exército, da Marinha, da Força
Nacional, o escambau. Tenho esperança de poder voltar para casa qualquer dia
desses. Em lá chegando, se sobreviver, volto a escrever a você. Por ora, esse
inferno.
Da
sempre sua, com um beijo,
Suzete.
PS: O nome do homem famoso, pai da Ana
Luisa, é Antonio Cândido.
Que figura!
ResponderExcluirEssa Suzete, se não existisse, era preciso inventar!
ResponderExcluirBom que ela tenha voltado.
E tomara que não escolha o Rio de Janeiro para as próximas férias...