terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Sonhos à moda de Franz Kafka


Bronze de Jaroslav Róna, em Praga.

Sonhos, de Franz Kafka, é um livrinho precioso. Editado no Brasil pela Iluminuras nos idos de 2003, com tradução de Ricardo F. Henrique e prefácio de Luis Gusmán, parece não haver um correspondente original do autor tcheco, publicado em vida ou mesmo após sua morte (1883-1924). A editora informa que a seleção efetuada por Gusmán partiu das obras Träume (Fischer Taschenbuch Verlag, 1993) e Obra completa (S. Fischer Verlag, 1992). Importa que ganhamos um presente.
Afirma Márcio Seligmann-Silva, já na orelha do livro:

“O arado que corta, neste autor, tanto sua vida de escritor como seu sono, confunde uma fronteira com a outra. Se para ele ‘nem o sono nem o despertar’ são ‘verdadeiros’, é porque ao invés de ‘dormir’ ele está constantemente povoado por sonhos: ‘só sono nada de sonhos’, ele anota em seus diários (melhor dizendo: noitários!). O ‘material resistente’ dos sonhos, sua supernitidez (e realidade), não o impede de “dormir”, mas também rompia os limites entre a noite e o dia, o corpóreo e o simbólico.”

Acho melhor chamá-lo de Literatura em estado bruto, onde sonho e vigília confundem-se o tempo todo, como assinala Kafka em uma de suas frases típicas:

“Até adormeço, mas ao mesmo tempo sonhos fortes me mantêm acordado”.

O livro é composto por relatos dos Diários, cartas a Max, Otto Brod, Felice Brauer, a seu chefe de repartição, diários de viagem, fragmentos de cadernos e folhas soltas, com ou sem data.
Freud já havia chamado a atenção, no magistral Interpretação dos Sonhos (1900), para a impossibilidade de uma reprodução ou registro exatos do sonho, que acaba sendo “modificado” por interferência do plano consciente. Kafka, que se manteve afastado da Psicanálise durante toda a vida, não se importava com isso, e precisava contar seus sonhos e não-sonhos, no seu incessante exercício de literatura, a única coisa de real valor para ele.
Gusmán destaca quatro gêneros de relatos no mundo onírico de Kafka. Primeiro, o da insônia, “na estreitíssima faixa do despertar e que está ligado ao ato de escrever”. Depois, a sonolência que resulta da insônia. Segue-se o devaneio, “pequenos relatos alucinados onde, no entressonho, a imagem é vista e sentida no corpo”. E termina pela necessidade de relatar o sonho, além de sonhá-lo, o que chamei de incansável exercício de literatura.
Em dezembro de 1911, nos Diários, Kafka anota outra frase característica:

“Escrever uma autobiografia me daria grande prazer, pois seria tão fácil quanto anotar sonhos”.

Portanto, para ele, sonho é vida, significa viver, desperto ou ao dormir.  
Às vezes o sonho parece-se com um conto, como este registrado em maio de 1913:

“A imagem contínua de uma fatiadora muito larga que me vai cortando em alta velocidade e com regularidade mecânica em fatias muito fininhas que saem voando quase enroladas por causa da rapidez do trabalho.” (Trata-se de um esboço para A Colônia Penal?)

O último “sonho” selecionado por Gusmán sintetiza a filosofia do livro, tem caráter poético, é uma pérola rara e foi retirado de fragmentos de cadernos e folhas soltas, sem data:

“Envolve a criança nas dobras do teu manto, sonho sublime.”

Eis Franz Kafka em toda sua genialidade e plenitude!

***

            O Louco, longe de ser pretencioso, inspirado nos Sonhos, de Kafka, a partir de agora inaugura a postagem Sonhos à moda de Kafka, relatos minimalistas sonhados e não sonhados, simples exercícios de escrever. Vejamos o resultado.

2 comentários: