Narciso (1594-1596), de Caravaggio
Uma bela
coleção de ensaios filosóficos é apresentada no volume organizado por Cícero
Cunha Bezerra e Oscar Federico Bauchwitz (Neoplatonismo: tradição e
contemporaneidade, Hedra, 2012). O primeiro artigo, Plotino entre Narciso e
Ulisses: jogos de espelhos e a nostalgia da casa, de autoria de Marcus Reis
Pinheiro, traz interessantíssima revisão histórica e filosófica do mito de
Narciso, tema de grande interesse entre psicanalistas, depois da conhecida
abordagem freudiana.
O autor apresenta cinco versões
antigas do mito, a começar pelo poeta romano Ovídio (43 a.C. – 17 ou 18 d.C.),
que em Metamorfoses, descreve Narciso como alguém que despreza todos aqueles
que dele se enamoram. A primeira vítima é a ninfa Eco, que de tão envergonhada
esconde-se numa caverna e definha até virar apenas voz. Em um dia de caça,
sedento, Narciso se debruça sobre um lago de águas tranquilas e se apaixona por
sua própria imagem. Segundo Ovídio, Narciso chega a ter consciência do que se
passa consigo próprio, mas não consegue se desvencilhar da figura refletida, e
acaba por sucumbir. As ninfas dos rios preparam-lhe o funeral, enfeitando-o com
a flor do narciso, que nasceu onde ele morreu afogado.
Conon (I a.C.), em Narrações, descreve
o desprezo de Narciso pelos seus amantes e zomba explicitamente de Eros, deus
do amor, que então dele se vinga.
Pausânias (II d.C.), um geógrafo que
passeia pela Grécia, apresenta versão menos conhecida, em que Narciso tem uma
irmã gêmea. Após a morte dela, o sofrimento de Narciso é aliviado quando ele
mira a própria imagem no lago.
Filóstrato, o Velho (III d.C.),
enfatiza a passividade de Narciso, que permanece numa mesma posição diante de
sua imagem refletida, esperando que um outro tome a iniciativa (provável sinal de
impotência?).
Plotino (205 – 270), filósofo grego
nascido no Egito, dos mais antigos a interpretar o mito, diz que Narciso
representa o homem apegado à beleza do corpo, incapaz de compreender o amor, e
que confunde a imagem com o real. Por seu desprezo por Eros – despreza todos
que se enamoram por ele –, acaba por se afogar. Para Plotino (e também Platão),
o homem deve aprender que além da beleza do corpo, há uma outra muito mais
intensa no nível inteligível. E adverte, com palavras atualíssimas: “Nós não
estamos acostumados a olhar o interior das coisas, nem o conhecemos, mas
procuramos o exterior, ignorando que é o interior que nos move.”
Em resumo, Narciso, filho do
deus-rio Cesifo e da ninfa Liríope, era de uma beleza ímpar, tanto que sua mãe,
preocupada desde seu nascimento, foi consultar Tirésias, que afirmou que o
jovem poderia viver muito “se não se visse” (Ovídio, Metamorfoses). Narciso foi
punido com a morte ao ver sua imagem refletida na água.
Sob o ponto de vista filosófico, é
difícil encontrar algo de positivo no comportamento de Narciso. Tanto que o
dicionário Houaiss registra como definição de Narcisista, “que ou quem é muito
voltado para si mesmo, especialmente para a própria imagem”. Narcisismo virou
sinônimo de egoísmo extremo.
Em 1914, Sigmund Freud publicou
artigo fundamental, complexo, em que muitos aspectos permanecem em aberto,
intitulado Sobre o narcisismo: uma introdução, trazendo à luz um novo enfoque
sobre o mito de Narciso. Inicia dizendo que o termo foi inicialmente utilizado
por Paul Näcke em 1899, e descreve dois tipos de narcisismo, um primário e
normal, e outro secundário.
O narcisismo primário constitui uma fase necessária no desenvolvimento
humano, bastante precoce, quando surge um primeiro esboço do ego, fase que vai
do funcionamento anárquico, auto-erótico, à escolha de objeto. Em outras
palavras, a criança investe toda sua libido em si mesma. A onipotência de seus
pensamentos dá esta possibilidade à criança.
O narcisismo secundário significa a
retirada dos investimentos no objeto, e o retorno da libido ao ego. Segundo
Laplanche e Pontalis (Vocabulário da Psicanálise), “Para Freud, o narcisismo
secundário não designa apenas certos estados extremos de regressão; é também
uma estrutura permanente do sujeito: a) No plano econômico, os investimentos de
objeto não suprimem os investimentos do ego, antes existe um verdadeiro
equilíbrio energético entre essas duas espécies de investimento; b) No plano
tópico, o ideal do ego representa uma formação narcísica que nunca é abandonada.”
Ou seja, narcisistas somos todos
nós. Mas há uma questão de intensidade. No convívio social, não é difícil
perceber o sujeito que só conjuga os verbos na primeira pessoa do singular –
ele mesmo. Julga-se ainda, como uma criança, o centro do universo, e deseja
tudo para si. Quando há equilíbrio entre os investimentos no ego e no objeto, e
é possível olhar-se no espelho sem danos, uma certa dose de narcisismo pode estar
bem próxima do que chamamos autoestima, sentimento fundamental para o ser
humano.
Marcus Pinheiro termina seu artigo
explicando a intrigante epígrafe do próprio texto: “A luz no fim do túnel é um
espelho”. Ele encontra tal ideia na ambiguidade sobre a busca
erótico-filosófica em Plotino, afirmando que “buscamos algo somente na medida
em que ainda estamos ignorantes da fonte do objeto que buscamos. Quando
“encontrarmos” aquilo que buscamos, surge a constatação de que nunca havíamos
nos apartado do nosso objeto amado, mas se encontrava tão próximo de nós mesmos
que já o éramos: o nível inteligível.”
Um desdobramento que ainda espero ler no "louco...": onde fica o limite entre a auto-estima e o narcisismo? Seria a depressão um narcisismo invertido?
ResponderExcluirO artigo dá o que pensar...