segunda-feira, 31 de março de 2014

Minha história de 1968


Neste 31 de março de 2014, todos aqueles que viveram os anos de ditadura militar, e cada vez serão menos os sobreviventes, todos têm algo a dizer ou rememorar, para o bem ou para o mal. Também eu tenho a minha história.
O ano era o de 1968. Na manhã do dia 22 de outubro, em frente ao Hospital Pedro Ernesto, da Faculdade de Medicina da UERJ, os estudantes preparavam-se para uma manifestação em protesto contra a falta de liberdade no regime militar. A Avenida 28 de setembro, no bairro de Vila Isabel, onde fica o hospital, embora de mão dupla, era estreita, composta por duas pistas de cada lado, separadas por pequenos canteiros de grama, onde foram plantadas algumas palmeiras. De modo que era pequena a distância entre a calçada em frente ao hospital e o lado oposto da avenida.
            Iniciada a manifestação, imediatamente surgiram as viaturas do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) do outro lado da pista. Os estudantes receberam os policiais com pedras. A reação foi imediata: passaram-se apenas alguns minutos quando o primeiro colega caiu ao meu lado. Segundos depois, caiu outro colega. Pensei, que gente mais frouxa, isso não é hora para escorregar, prestem mais atenção!
            Em seguida notei o sangue que manchava o jaleco branco dos alunos. Mais alguns minutos e caiu o terceiro colega. Resolvemos recuar, entramos no hospital e fechamos o portão principal de acesso ao estacionamento. Só então pude compreender o que estava ocorrendo: enquanto atirávamos pedras, os policiais respondiam com balas de verdade. Não me lembro de ter ouvido o estampido dos tiros. Porém, lembro-me muito bem que um colega considerado líder estudantil, (anos depois político de projeção no Rio de Janeiro), permaneceu todo o tempo protegido atrás do portão. Pouquíssimos perceberam este fato e, que eu saiba, não houve comentários.
            Ao que me lembro, foram três os baleados. Um recebeu o tiro na perna, outro, no abdome, o terceiro foi atingido na cabeça. Ajudei a carregar um deles para o centro cirúrgico do próprio hospital.
            Luiz Paulo Cruz Nunes, com 21 anos, que cursava o segundo ano de medicina, colega de turma de meu irmão, que também participava das manifestações, recebeu o tiro na cabeça. Depois de intermináveis horas na mesa de cirurgia, enquanto todos aguardávamos ansiosos por alguma notícia, ele não resistiu e morreu. 

O clima entre nós era de pânico, incluindo os pacientes. O hospital permanecia cercado pela polícia, e com quase todas as luzes apagadas. Ninguém entrava, ninguém saía.
Anoiteceu e resolvemos dormir no hospital. Consegui telefonar para casa, tranquilizando meus pais. Dormi mais uma segunda noite na mesma enfermaria, e apenas no terceiro dia voltei para casa. Ainda com medo.
Não me lembro de qualquer reação por parte da direção da Faculdade ou do Hospital, exigindo qualquer explicação sobre o ocorrido. Havia apenas o silêncio.
Ao final de 1972, os 128 estudantes daquela mesma turma, incluindo meu irmão, e seus familiares, preparavam-se para a solenidade de formatura no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, quando teve início o coro gritando o nome de Luiz Paulo. O diretor da Faculdade, Prof. Jaime Landmann, imediatamente encerrou a sessão, fecharam-se as cortinas do teatro, não houve formatura. Restou ainda apenas o silêncio.

Muito bom que possamos falar e até escrever sobre esses acontecimentos nos dias de hoje, para que jamais sejam esquecidos.

7 comentários:

  1. Eu ajudei a carregar o Luiz Paulo, que era um grandalhão boa pinta e ótima praça. Dia inesquecível, mesmo. Acho que mesmo entre nós pouco falamos dele. Eu não lembrava, por exemplo, que você tinha dormido no hospital. Eu fui para casa no final da tarde, morrendo de medo - imagine que imprudência. E tem gente querendo fazer "Marcha pela Família" de novo, em pleno 2014!

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    1. Que bom que hoje somos bem mais próximos que naquele tempo, Paulo.

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  2. História marcante, Dr! Para falar o mínimo. Meu testemunho desses tempos é bem mais modesto: lembro-me de ser severamente repreendido por meu pai quando interrompi uma conversa que ele estava tendo com um oficial do exército em nossa sala de estar, no início dos anos oitenta. Eu disse ao oficial que se comentava bastante lá em casa sobre as arbitrariedades e a corrupção do governo militar. Depois que o milico se foi, eu ouvi "Você tá louco! Sabe que ele pode levar a mim e sua mãe embora daqui?"

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  3. Seguem fotos do colega:
    1. http://cemdp.sdh.gov.br/modules/desaparecidos/acervo/ficha/cid/322
    2. http://blogdoarretadinho.blogspot.com.br/2013/01/mortos-pela-ditadura-luiz-paulo-da-c.html

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  4. Vocês participaram desta solenidade?
    http://g1.globo.com/Noticias/Brasil/0,,MUL837604-5598,00-MEDICOS+COMEMORAM+FESTA+DE+FORMATURA+SUSPENSA+PELA+CENSURA.html

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