terça-feira, 17 de setembro de 2013

O Casal Arnolfini


Capítulo VII

(Romance em construção,
vivido em Londres nos anos 80)


Durante três meses Beatriz tentou localizar Westby, o professor orientador. A secretária da Unidade informou-a de que ele estava de férias, seguidas por estágio num hospital ao norte de Londres, mas que estaria de volta em poucos dias,
            – você vai gostar dele, é um bom homem, você vai ver,
o que despertava nela alguma esperança, atormentada pelo ócio daqueles dias, por não ter o que fazer –  cirurgiã acostumada a fazer –, embora se dedicasse obstinadamente a aprimorar seu inglês. Começara o segundo caderno de colagens, os artigos selecionados um pouco mais complicados, as idas aos dicionários já não eram tão frequentes, mas ainda apanhava muito das manchetes e expressões idiomáticas
: Curiosity killed the cat,
: Dog days of summer,

: It’s rainning cats and dogs,
            – onde já se viu chover gatos e cachorros, só mesmo em cima dos britânicos,
ela brincava, pura implicância, Beatriz não era burra, sabia muito bem o significado de expressão idiomática. (Porque a vida não tem mesmo sentido, podemos dizer que a vida no planeta Terra é uma expressão idiomática do universo!)
            Bem, naqueles primeiros fins de semana de ócio desesperador na Unidade, Beatriz tratou de iniciar a exploração de Londres. Afinal, este havia sido o principal motivo daquela aventura, viver numa espécie de capital do mundo. Ao entrar pela primeira vez na National Gallery, e fez questão que este fosse o primeiro local a ser visitado pois conhecia de longa data a riqueza do acervo do museu, sentiu-se recompensada. Durante vários meses, este foi seu programa nas tardes de sábado, com a vantagem de que o ingresso era gratuito.
            A galeria fica na Trafalgar Square, bem no centro da cidade, lugar sempre movimentado, cheio de gente do mundo inteiro, e era de gente que Beatriz sentia falta, cansada dos zumbis e da objetividade burra (mais uma vez o gênio de Nelson Rodrigues) dos nativos da Unidade. E Bia pôde entrar em contato com outro tipo de gente: Leonardo da Vinci, Botticelli, Caravaggio, Rembrandt, Jan van Eyck, Rubens, Vermeer, Thomas Gainsborough, Turner, Renoir, Monet, Van Gogh, Toulouse-Lautrec, Gauguin, Degas, Manet, Berthe Morisot, Picasso. Um deslumbramento.
            Beatriz nunca soube o porquê, porém ao deparar-se com O Casal Arnolfini, o mais famoso quadro do pintor flamengo Jan van Eyck, pintado em 1434, desatou num choro convulsivo. Durante intermináveis minutos ela procurou pelo quadro nas sucessivas salas da galeria, resolveu que não pediria informações sobre sua exata localização, desejava encontrá-lo sozinha, descobri-lo por si mesma, era a realização de um sonho antigo prestes a se concretizar, o que bem expressava sua determinação e autoconfiança, andou andou andou até que deu de cara com a pequena tela de 82 x 60 cm, mostrando o rico comerciante Giovanni Arnolfini e sua esposa Giovanna Cenami, que viveram na cidade de Bruges entre 1420 e 1472, de pé em sua alcova. Há um que de cerimônia e teatralidade na cena: o marido, com expressão severa no rosto abençoa sua mulher, que por sua vez lhe oferece a mão direita enquanto repousa a mão esquerda em seu próprio ventre. Estará grávida Giovanna Cenami? A visível protuberância em seu ventre sugere o prenúncio da maternidade. Possivelmente uma manifestação de um forte desejo, pois ela não chegou a conceber. As vestes luxuosas de sóbrias cores indicam a elevada posição sócio-econômica do casal. Em tudo revela-se a riqueza material, no vestuário, nos móveis, nas frutas no parapeito da janela. As laranjas são claro sinal de luxo e talvez indiquem a origem mediterrânea dos protagonistas. A cama, lugar onde se nasce e onde se morre, revela intimidade e paixão, este sentimento tão privado também representado pelos tecidos vermelhos, em contraste com o verde musgo da veste de Giovanna. Os tamancos de Giovanni no canto inferior esquerdo do quadro sinalizam que se trata de uma cerimônia religiosa. Os sapatos vermelhos de Giovanna estão perto da cama: acredita-se que estar descalça assegure a fertilidade. O pequeno espelho ao fundo, medindo 5,5 cm de diâmetro, certamente o mais intrigante detalhe de toda a obra, contendo ao redor as dez cenas da Paixão de Cristo, cada uma medindo 1, 5 cm, minúcias da minúcia, e afirmando a fé cristã do casal, reflete todo o ambiente, o mobiliário, os nubentes, a janela com a vista de Bruges. O candelabro contem uma única lâmpada a  simbolizar a chama do amor; é costume acender uma vela no primeiro dia de casamento.
            Um casal em carne-e-osso que visitava aquela sala do museu viu Beatriz debulhar-se em lágrimas diante da pequena tela e afastou-se em respeitoso silêncio. (O que uma obra de arte pode mobilizar em nós: insuspeitas incontidas emoções guardadas na mais recôndita dobra de nossa alma e que vêm à tona sem que tenhamos qualquer controle sobre elas.) Durante muitos anos Beatriz debruçou-se sobre a história desta pintura, fascinada pelo misto de realidade e fantasia que contem. O casal Arnolfini existiu de fato, residiu em Bruges entre 1420 e 1472, mas foi o retrato pintado por van Eyck que se encarregou de tornar sublime e eternizar aquela cena. A força da arte. Agora, Beatriz podia senti-la,
– uma experiência que vale por uma vida inteira,
pensou, e guarda até hoje com enorme emoção a reprodução emoldurada daquele quadro numa parede de seu próprio quarto.

3 comentários:

  1. Fascinante a sua narrativa! Obrigada por essa emoção, André!

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  2. Sem demora procurei mais sobre o quadro, e cada detalhe nos envolve mais ainda, que riqueza de detalhe.E a memória volta no tempo em recordações com Beatriz...

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  3. O pequeno espelho reflete com inacreditável fidelidade o ambiente do quarto. Nesse reflexo, o que mais me impressiona é a presença do próprio Van Eyck.

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