Minha querida Eva,
afirma Walter Benjamin que “todo convencimento é infrutífero”; partamos,
portanto, deste princípio, na tentativa de estabelecer um diálogo, e nada
melhor para tanto que a discordância, a dissonância, a diferença, quando podemos
pensar com nossa própria mente, e separar o que é nosso, aquilo que a nós
pertence, do que é do outro, e ao outro pertence.
Trata-se do Caim, de
José Saramago.
Se entendi bem, a você
pareceu que o romance não tem consistência, é fragmentário, desconexo em seu
enredo, repleto de histórias dispersas, não coesas, descuidado até para com o que chamamos de
romance, e por aí vai, não importa se entendi bem ou não: você não se deixou
impressionar pelo livro, este é o fato. A mim, impressionou-me muitíssimo; aí
está a dissonância, e desejo apresentar algumas poucas razões pelas quais
impressionou-me, na forma de uma carta, o que dá bem a ideia de quão antiquado
eu sou, já que ninguém se utiliza mais deste meio de comunicação, o e-mail é muito mais prático, rápido,
eficiente. Porém, esta é uma carta, e assim gostaria que fosse lida.
Vamos, pois, ao tema.
Quando Adão e Eva, já exaustos, sem esperanças, frustrados demais com a perda
do Paraíso, encontram um caminho, uma estrada, ou algo parecido, e resolvem
esperar, até que surge uma caravana, que os acolhe e os leva até o povoado mais
próximo, então o autor começa de fato a falar sobre a loucura que é deus (assim
mesmo, com a inicial minúscula, para diferenciá-lo de um Deus, que para
Saramago não existe). Este deus ainda contemporâneo, o deus que não viu
Auschwitz, que lá não estava, conforme o próprio representante dele aqui na
Terra inadvertidamente confessou (“E Deus, onde estava?”, perguntou Bento XVI,
duas vezes em seu discurso, ao visitar o campo de concentração nazista), este
deus de uma incoerência absoluta. No meu ponto de vista, foi isso que Saramago
descreveu: a incoerência estúpida desse deus, através de uma história que não
poderia ser contada, portanto, de forma coerente, coesa, tradicional, com
começo-meio-e-fim, como são contadas pelos homens as histórias bíblicas.
(Lembra-se, Eva, do final de As
benevolentes, do Jonathan Littell? Alguns não entenderam nada, porque buscaram
um sentido lógico para o término de uma loucura coletiva. Acho que nós
entendemos bem: ao final, o homem apenas enlouqueceu!)
Dizia meu avô que a
Bíblia era o livro mais estúpido e mentiroso que já fora escrito, lembro-me bem
dele ao pronunciar estas palavras, que me soavam então radicais, blasfemas até,
para um menino como eu, filho de funcionário do Banco do Brasil, morador de
cidade do interior. Proféticas palavras, para José Saramago! Meu avô teria
gostado do Caim. Bem, mas por quê ele entra na história neste momento da
missiva?
O fato é que o deus do
livro Caim faz tudo sempre errado. Nem os homens erram tanto. O Evangelho do
Saramago tem começo-meio-e-fim, pois assim me parece que é o Novo Testamento,
ao menos a vida de Jesus Cristo. Já o Velho é caos. E caótica deve ser
necessariamente a história a ser contada pelo ateu Saramago. Penso que este
livro está pronto há muito tempo, admito que a pneumonia possa ter apressado
seu término - esta
é apenas uma conjectura -,
mas o término na forma em que foi concebido, uma conversa interminável entre
Caim e deus me parece uma solução de gênio, pois assim caminham os homens hoje,
as religiões, as disputas teológicas, a estupidez humana, uma desconversa sem
fim, sem sentido, numa terra de cegos, de vários pequenos e mesquinhos deuses,
criaturas dos homens. Só poderiam ser.
Sob o aspecto puramente
literário - quanta pretensão a minha! (por isso, o que escrevo deve ser avaliado sob a
óptica de quem lê uma carta, com a intimidade que só uma carta permite, e que
dá o direito ao escrivinhador de dizer qualquer asneira, pois é para um único
leitor que ele diz) -, sob
o aspecto literário penso que este movimento de vai-e-vem da narrativa, com
flashbacks, muitas vezes sem a devida correspondência temporal, atemporal como
o nosso próprio Inconsciente (não podia faltar uma pitada freudiana, dirá
você), dá um forte caráter de modernidade ao romance. Há tanta incoerência
quanto liberdade. E liberdade de pensar, para poder escrever, é tudo. É assim
que se faz Literatura.
Bem, são algumas ideias
que ofereço para sua consideração, querida Eva.
Um abraço afetuoso do
seu
Abel.
Publicado em O mito do vaso partido e outros escritos, Ex libris, 2010.
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