quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

    Em meio à arrumação que a morte nos impõe, se pretendemos evoluir no doloroso processo do luto organizamos gavetas, caixas, armários. Quanta coisa guardada, meu deus!  E qual o propósito? Na tentativa de desocupar um móvel meio pesadão,  espaçoso demais (o André certamente diria que eu estava tentando me descartar dele próprio!?), encontrei um de seus inúmeros diários. Este chama a atenção pela letra caprichada, as datas lá estão. Reconheço alguns momentos, de outros não me lembro  e nem poderia porque essa é uma memória dele. Não sinto que estou invadindo, xeretando: o diário ficou aqui por quase trinta anos dentro de um armário e se hoje eu perguntasse a ele "o que é isso?" tenho quase que certeza da resposta "não faço a menor ideia". O que quero dizer é que esse diário há de ter servido naqueles tempos para uma reflexão sobre aqueles dias. Reflexão??? Palavrinha ruim essa na falta de outra melhor. Serviu para  pensar, exercitar a autocrítica e conversar de forma muito verdadeira consigo mesmo. Transcrevo aqui um trecho. A grafia e a pontuação são dele. O pequeno poema também, me corrijam se estiver enganada, mas procurei e não achei autor. Mesmo que haja penso que está bem a propósito.

23/12/1994: "Véspera de Natal. O cheiro de pêssego no ar, Bach, violino e contínuo. E uma Paz difícil de aceitar. Vontade de escrever ao irmão distante: nada dizer, a não ser da saudade, das lembranças mais queridas, de uma vida que passou.

Como tem passado a Vida!

Quanto ainda há de passar?

Água que corre

às vezes límpida

de riacho quase puro

às vezes turva

de enchente lamosa

transbordante

sem margens o rio da Vida."


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