Mais 47 cenas do Romance Familiar
Foi preciso que deparasse com a fotografia no Twitter para que toda a cena, tantos anos guardada na memória, surgisse cristalina, inteira, vívida em meu espírito. Ah! a nossa memória!
Aos 10 anos de idade passei duas semanas em São Paulo, em companhia de meu pai. O motivo, um certo tratamento (?) para meu estrabismo através da ortóptica; em português raso, exercícios para botar o passarinho dentro da gaiola. Foi um tempo mágico! O pai exclusivo para uso meu, atenção total, dedicação exclusiva, passeios pela cidade onde ele havia morado quando solteiro e que conhecia com intimidade, hospedagem na pensão de Dona Cinhaninha, muito simples e asseada, onde o pai havia morado anos atrás. Com muito orgulho, fiquei conhecendo alguns de seus amigos, que continuavam morando no mesmo lugar.
Além da felicidade reinante, me lembro bem de um fenômeno por mim experimentado, sem que me tivesse dado conta à época, naturalmente. Eu regredi! Voltei alguns anos em meu comportamento, parecia um menino com a metade da idade real. E, portanto, cheio de vontades.
Antes de passar ao centro da história, uma advertência: Seu Ofir não era homem de gastar dinheiro à toa, nunca foi, tanto que os filhos nunca souberam o que era ter dinheiro no bolso, até a emancipação e saída de casa, adultos jovens. Fazia isso por princípio, herança familiar cultivada ao extremo.
Em um dos passeios pelo centro da cidade, findo o trabalho inútil de guardar o passarinho, vi pela primeira vez um homem tocando realejo, encimado por pequena gaiola contendo um periquito. Se o passante solicitava a leitura da sorte, o homem abria a portinha da gaiola, o bichinho saía e com o bico puxava pequeno bilhete contendo o vaticínio! Para mim, uma cena indescritível, para a qual não tinha palavras adequadas: uma obra de arte, poesia em estado puro, verdadeira mágica!
Pedi para meu pai a leitura da sorte, e ele, depois de muito relutar, conversar paciente comigo, Isso é bobagem, meu filho, mas o menino fincou o pé, queria-porque-queria, até que o pai consentiu. Tremenda emoção pela deferência do periquito para com a minha pessoa! O que havia escrito no papelinho, disso não faço a menor ideia.
A fotografia do Instituto Moreira Salles me trouxe lágrimas aos olhos já cansados nesta manhã suave de maio e céu azul.
Foto: Realejo na Praça do Patriarca, SP, em 1953. Alice Brill #SPFotos.
Lembrei na hora!
ResponderExcluirÉ mesmo. Aqui tinha também e me lembrei direitinho do periquito tirando a sorte. tadinho. Hoje em dia acharia crueldade.
ResponderExcluirRegina
Bacana seu conto. Boas lembranças do seu tempo de jovem. Parabéns. Gostei muito!
ResponderExcluirBelarmina
Eita, eu também já vi um realejo. E também não me lembro o que tinha no papelzinho!
ResponderExcluirLeopoldo
Certamente é que seria um médico e professor famoso!
ExcluirAndré
Também eu tive esta emoção, foi bem mais tarde, com 17 anos. Lembro que foi na praça da Sé. O que estava escrito no papelzinho, nem imagino. Abraços.
ResponderExcluirMario Abreu
Eu me lembro: no papelinho estava escrito que essa memória preciosa ressurgiria no momento em que o menino estivesse no auge da sua carreira de cronista.
ResponderExcluirÔôô Moisés, só você mesmo!
ExcluirAndré
Belíssimo conto ou melhor relato? Lembrança delicadamente . Quanta emoção na lembrança. Que sensibilidade na escrita. Emocionante de se ler. Um presente para o leitor do Louco. 💝💝💝💝💝
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