Às oito horas e cinco minutos daquela segunda-feira quente e abafada toca o celular. Dona Dulce atende, o telefone na mão esquerda, o abanador na direita, o suor escorrendo pelo pescoço, A semana começa mal, disse para si mesma, mais irritada do que de costume. Na contramão da vida, ela não tolerava celular, Aparelho mais desconveniente, protervo, um estorvilho na vida da gente.
– Alô.
– Dona Dulce Martins do Valle e Silva?
– Ela mesma.
– Bom dia, Dona Dulce! Aqui é o Mathias, gerente do seu banco. Lembra-se de mim? Tenho ótimas notícias pra senhora. Seu precatório saiu, o dinheiro está liberado. A senhora não é professora aposentada?
– Sim.
– Pois então, seu dinheiro saiu faz uma semana, corre risco de ser devolvido se a senhora não retirar ele logo.
– Retirá-lo...
– Isso. Preciso urgente do seu CPF, identidade, número e senha do cartão da aposentadoria, número e senha da conta do banco, eu mesmo tomo providências, recebo o dinheiro e transfiro pra sua conta. E não vou cobrar nada por isso, é cortesia do seu gerente. Mathias, se lembra de mim?
– Acho que lembro.
A notícia iluminou a manhã de Dona Dulce. Aquele era mesmo seu nome completo, Valle por parte de pai, Silva do defunto marido. Fora professora a vida inteira, e agora, aos 80 anos, o dinheiro da aposentadoria mal dava para os remédios. Vivia num aperto danado, precisou tomar dois ou três alunos para aulas particulares, ou não sobraria tostão para o feijão. A sorte é que ganhara do filho único o pequeno apartamento onde morava, não precisava pagar aluguel, mas o condomínio estava pela hora-da-morte. O filho já não podia ajudar: sofrera queda de moto, acidente grave, restava paraplégico em leito de hospital público. Desdita, verdadeiro desfortúnio, uma frágua, uma tumbice, cambapé do destino, e nós, eu e meu filho, acabamos por soçobrar, repetia ela com desalento.
– Há uma semana! Mas por que não me ligaram antes?
– Nóis liga mas a senhora não atende!
Nesse exato momento fez-se um imenso silêncio perturbador prolongado interminável mesmo: definitivo. Como se o mundo tivesse acabado. Acabou a vida no planeta Terra. Sobrou o Nada.
– Alô. ... Dona Dulce.
Dona Dulce muda como uma porta.
– Alô, alô, a senhora tá aí?
– .............................................................
– Dona Dulce, não desligue. Assim vai perder seu precatório!
Dona Dulce respira fundo e dispara:
– Súcia, malta, cáfila, canzoada, caterva, verdadeira farândola, récua, choldra de gentalha, escumalhas, isso é o que vocês são, porqueiras infernais. Desde quando um gerente de banco fala NÓIS LIGA? Isso é golpe! Enxurro! Espero que paguem, pela tentativa de gadunhar esta infausta velha, congelados no Lago Cócite, o último círculo do Inferno de Dante!
De lá, desligaram o celular. Dona Dulce oscilava entre o ódio e o prazer de não ter sucumbido. No rosto, um sorriso nefando.
Imediatamente ligou para a Polícia, fez Boletim de Ocorrência. Identificou-se, nome completo, endereço, cpf, Profissão?:
– Professora de Português, com muita honra e gosto!
Na revista famosa do século passado "Seleções Reader's Digest"havia uma coluna : " Enriqueça seu vocabulário " Vejo com alegria, renascer neste blog. Ótimo conto e aula com os vocábulos.
ResponderExcluirGostei demais do seu blog!! Suas histórias são maravilhosas!
ResponderExcluirAdorei o seu blog com suas histórias maravilhosas! Que continues a nos encantar com suas palavras!
ResponderExcluirMuito obrigado, Anônimo. Gostaria de saber quem você é.
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