Assim tem início É isto um homem?, de Primo Levi (Ed. Rocco, 1988). Penso que ninguém descreveu com tanta perfeição o que se passou a denominar Processo de Desumanização, executado pelos nazistas em seus campos de concentração. Os alemães perceberam que era mais fácil matar um animal, ou mesmo uma coisa, do que matar um ser humano. O trauma (porque havia um trauma) era bem menor entre os próprios soldados alemães.
A luta por um pedaço de pão levava aquele que desejava sobreviver a subtrair o pão de seu semelhante, mesmo que isso lhe causasse dor em si mesmo. Sobreviver a todo custo, esta era a ordem. E isso também fazia parte do Processo de Desumanização.
Esta foi a associação de ideias que me ocorreu com a notícia de ontem. Bolsonaro e alguns de seus asseclas, incluindo o ministro da justiça que outorgou a honraria a si mesmo, foram condecorados com a medalha do mérito indigenista.
Durante mais de dois anos ouvimos o presidente desmoralizar os povos indígenas, tentar apagar a cultura deles, apoiar a evangelização dos povos ainda isolados, desaparelhar a Funai, incentivar desmatamento e mineração em terras indígenas, acabar com a fiscalização de atos ilegais na Amazônia, a lista de ações nocivas destruidoras perversas contra a população indígena é interminável.
A maioria do povo brasileiro não concorda com tais atitudes. Agora, quando o presidente recebe uma medalha de mérito indigenista, sinto como se ele gritasse na minha cara:
“Veja como você é um merda mesmo, como você não vale nada, como sua opinião não vale nada. Eu piso nos índios e ganho uma medalha!
Eu não reconheço qualquer sentimento em você. Não me interessa o que você pensa sobre minha medalha, se gostou ou não gostou. Eu gostei, vou ganhar votos com isso.
Se não reconheço sentimentos em você, acho que você não pertence a mesma raça que eu. Acho que você não é humano.
Se você, povo brasileiro, é não humano, posso mentir à vontade, posso desdizer amanhã o que disse ontem, posso criar historinhas para desviar sua atenção daquilo que realmente importa.
Você, povo desumanizado, adora historinhas: é a força avassaladora do Mito sobre a manada.
Para você, basta um Mito. Quem não é homem não pensa, não tem capacidade de crítica, acredita em minha medalha. Aquele desumanizado, eu faço dele o que eu quero, e ele não reclama, até acha bom!
Povo de merda... Coisa de merda...”
Por associação livre, estes foram os pensamentos e emoções despertados em mim, pela condecoração do presidente da república com a medalha do mérito indigenista. Ao terminar esse texto, posso pensar, estou certo de que não sou uma coisa. Eu sou um homem.
Inveja do avestruz que enterra sua cabeça para nada ver ou ouvir, dos animais que hibernam e acordam meses depois, dos que demenciaram e não tomam conhecimento de nada. Quando estaremos livres dele?
ResponderExcluirConcordo. Estou doida pra ve-lo pelas costas
ResponderExcluirO melhor texto escrito nesse Louco!
ResponderExcluirVerdadeira escrita terapêutica ao colocar todo o sentimento na fala do condecorado.
Inteligentíssima o gancho com as ideias de Levi.
ResponderExcluirSituação absolutamente patética e asquerosa.
ResponderExcluirE ridículo ao estremo o ministro da justiça se auto honrar. 🤦🏻♀️🤦🏻♀️🤦🏻♀️🤦🏻♀️🤦🏻♀️🤦🏻♀️🤦🏻♀️🤦🏻♀️🤦🏻♀️🤦🏻♀️🤦🏻♀️🤦🏻♀️🤦🏻♀️🤦🏻♀️🤦🏻♀️
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirAndré, li Primo Levi. Não tinha me ocorrido aplicá-lo a nossa atual situação.
ResponderExcluir“Eu sou um homem.“
Helena Lopes
Espetacular!
ResponderExcluirStenio
Bela manifestação, André!
ResponderExcluirFlávio Andrade Goulart
Ótimo! O capetão não vai gostar.
ResponderExcluirLeopoldo