“Se aprendi alguma coisa em 30 anos frequentando cadeias, foi a reconhecer marginais. Podem disfarçar os modos, o jeito de andar, o palavreado, os gestos, mas o olhar os trai. Anos atrás, quando vi pela primeira vez na TV o cidadão que se intitulava João de Deus, não hesitei em dizer para minha mulher, ao lado: é bandido.”
Interrompo aqui a excelente crônica de Drauzio Varella para a Folha de S. Paulo, intitulada João 171, de ontem (2.fev.2020), para relatar inusitada experiência pessoal, que adianto, verídica.
(O aluno cursava o último ano de Medicina e fazia estágio na Cirurgia Geral, Serviço sob minha responsabilidade. Desapareceu por uma semana, sem que qualquer colega soubesse seu paradeiro. Apareceu numa segunda-feira. Chamei-o para conversar e me pediu que o fizéssemos em sala reservada. Contou-me a seguinte história.
– Professor, no fim de semana passado fui a Goiânia [cidade a 200 km de Brasília, para os que não conhecem o Planalto Central]. No meio da viagem dei carona a uma mulher, que depois percebi tratar-se de uma prostituta. Mas a viagem transcorreu sem problemas. Ao chegar em Goiânia fui parado pela polícia, pediram meus documentos, perguntaram quem era a minha acompanhante, expliquei ser apenas uma carona, revistaram a bolsa da mulher... e imagine o senhor, encontraram cocaína na bolsa dela! Fomos todos para a delegacia. Não sei o porquê, não acreditaram na história da carona, de modo que fui tratado como traficante. Permaneci detido por uma semana, enquanto faziam as devidas averiguações. Foi horrível, Professor. Só ontem fui liberado, de modo que não pude comparecer ao Serviço durante toda a semana.
Confesso que fiquei pasmo diante do que acabara de ouvir, mas acima de tudo, extremamente penalizado com o sofrimento imposto ao rapaz pela polícia truculenta. Procurei consolá-lo, que tivesse mais cuidado durante as viagens, que voltasse ao trabalho pois suas faltas seriam relevadas. Nos despedimos com caloroso aperto de mãos.
A segunda surpresa veio logo a seguir, quando ao deixar a sala, dois ou três colegas me esperavam para conversar sobre o tal aluno. Me informaram que viram a matéria no jornal da manhã na TV local: o aluno foi pego em flagrante em Goiânia, fazendo vestibular para Medicina para outra pessoa; o impostor foi preso, mantido atrás das grades durante toda a semana, e só então liberado.
Agora a segunda confissão: não fiquei pasmo, fiquei estarrecido, com minha ingenuidade e incompetência para identificar um salafrário, depois de mais de 30 anos como professor universitário.
O aluno foi encaminhado ao Serviço Jurídico da Universidade.)
Voltemos a Drauzio Varella e sua perspicácia para identificar um bandido. Ele afirma que os olhos acabam por entregar o malfeitor. “O tal João que apregoava incorporar o espírito de um médico do além-túmulo, que lhe trazia a capacidade de curar enfermos, tinha o olhar em desencontro com a expressão piedosa que a fisionomia se esforçava para transmitir, fugidio, arisco, incapaz de se fixar nos olhos da repórter que o entrevistava.”
“No auge da fama, o número de visitantes chegou a 2.000 por dia [a Abadiânia, Goiás]. Oncologista a vida inteira, vi surgirem vários tipos como esse, curandeiros que apregoavam trazer a saúde de volta aos desenganados, graças à intervenção de entidades extraterrenas que reencarnavam em seus corpos bem aventurados. Com a esperteza para enganar tanta gente por tanto tempo como esse tal João, entretanto, não soube de outro.”
Prossegue Varella: “Como é inevitável na carreira dos meliantes, no entanto, um dia a casa caiu. O jornalista Pedro Bial entrevistou mulheres que afirmavam ter sido molestadas pelo espertalhão. A essas delações se juntaram centenas de outras. O ex-emissário de Deus não passava de um homem desprezível que se valia de sua posição para atacar mulheres fragilizadas por tragédias pessoais e dramas familiares. A credulidade, entretanto, é tão irracional que ainda há quem defenda separar o joio do trigo: de um lado, o homem e as fraquezas da carne, de outro, os poderes transcendentais das entidades que ele garantia encarnar. Depois de condenado a mais de 50 anos de cadeia por pequena parte de seus crimes, há devotas que teimam em visitar a hoje decadente Abadiânia, na esperança de captar eflúvios energéticos remanescentes nas instalações em que o vigarista as abençoava.”
Captar a “energia”, como se diz por aí. Que energia é essa?
Varella conclui dizendo que compreende que pessoas simplórias e de boa fé sejam ludibriadas; o que ele não compreende é que pessoas que tiveram o privilégio de estudar em boas escolas possam “crer em milagres”, em “curas mirabolantes” e em “personagens tão bizarros quanto esse senhor”.
De minha parte, aprendo sempre com Drauzio Varella. Aprecio forma e conteúdo de seus textos, apoiados em vastíssima experiência pessoal e grande capacidade de observação. Quanto a este último quesito, não tenho do que me vangloriar: não reconheço um bandido a meio metro de distância.
A meu favor, a voz de Shakespeare: "Não existe arte que ensine a ler no rosto as feições da alma" (MacBeth, ato I, cena IV).
A meu favor, a voz de Shakespeare: "Não existe arte que ensine a ler no rosto as feições da alma" (MacBeth, ato I, cena IV).
Texto delicioso. Assunto pelo qual me interesso muito. Sempre me vangloriei de saber identificar se um candidato à vaga na minha empresa vai dar certo ou não nos primeiros 5 minutos da entrevista de emprego. De fato há pesquisas indicando que nós percebemos mais pelas expressões faciais e gestos do que poderíamos racionalmente explicar. Mas vez ou outra sou pega de surpresa, enganada...
ResponderExcluirQue bom você por aqui, Paula! Ótimo seu comentário. Como pôde ler, seu pai é um fracasso...
ExcluirTambém sou fã do Dráuzio Varella! E também me engano muito com as pessoas! Parece que há muita gente fake new...
ResponderExcluir"- Não existe arte que ensine a ler no rosto as feições da alma" (Shakespeare, MacBeth, ato I, cena IV)
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