Escreve Laurentino Gomes: “O padre Antônio Vieira atribuía o comércio de escravos a um grande milagre de Nossa Senhora do Rosário porque, segundo ele, tirados da barbárie e do paganismo na África, os cativos teriam a graça de serem salvos pelo catolicismo no Brasil. Foi esse o teor da homilia que pregou par uma irmandade de escravos de um engenho na Bahia, em 1633:”
“A mãe de Deus, antevendo esta vossa fé, esta vossa piedade, esta vossa devoção, vos escolheu entre tantos outros de tantas e tão diferentes nações, e vos trouxe ao grêmio da Igreja, para que lá [na África] não vos perdêsseis, e cá [no Brasil] como filhos seus, vos salvásseis. Este é o maior e mais universal milagre de quantos faz cada dia, e tem feito por seus devotos a Senhora da Rosário. [...] Oh, se a gente preta tirada das brenhas da sua Etiópia, e passada ao Brasil, conhecera bem quanto deve a Deus, e a Sua Santíssima Mãe, por este que pode parecer desterro, cativeiro e desgraça, e não é senão milagre, e grande milagre!”
Acrescenta L. Gomes: “No mesmo sermão, Vieira sustentava que, aos escravos, cabia não apenas aceitar o sofrimento do cativeiro, mas se alegrar com a inestimável oportunidade que tinham de imitar os sofrimentos de Jesus no Calvário:”
“Bem-aventurados vós se soubéreis conhecer a fortuna do vosso estado, e com a conformidade e imitação de tão alta e divina semelhança aproveitar e santificar o trabalho. [...] Em um engenho sois imitadores de Cristo crucificado [...] porque padeceis de um modo muito semelhante o que o mesmo Senhor padeceu na sua cruz, e em toda a sua paixão.”
Quem pretende analisar, ou mesmo julgar, fatos ocorridos em uma determinada época precisa necessariamente considerar costumes, valores, necessidades, vicissitudes, enfim, as circunstâncias da época. Isso é bastante óbvio.
Então, não se pode julgar a Igreja por suas ações durante o período escravista, embora não haja dúvida sobre a efetiva e determinante participação dessa instituição. E os jesuítas compuseram a ordem religiosa que mais atuou para o desenvolvimento da escravidão na Europa, América Central e América do Sul.
Porém, o que desejo ressaltar mesmo é o discurso do venerável padre Antônio Vieira, aquele que é considerado o Imperador da Língua Portuguesa. Os seus Sermões são o que de mais precioso já foi escrito em nossa língua. (Vieira foi a grande inspiração do nosso Nobel de Literatura, José Saramago!) No Brasil, foi defensor ferrenho da proibição de se escravizar índios. Vieira era um gênio! Impossível, portanto, que ele acreditasse que os “cativos teriam a graça de serem salvos pelo catolicismo no Brasil”, ou que fossem “imitadores de Cristo crucificado” em seu sofrimento insano.
Precisamos conhecer as circunstâncias em que tais fatos ocorreram. Para tal, nada melhor do que ler Escravidão, da autoria de Laurentino Gomes (Globolivros, 2019). Trata-se do primeiro volume, que aborda “Do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares”. Outros dois volumes estão em andamento, para 2020 e 2021.
Laurentino expõe com clareza a participação de Portugal, Inglaterra, Holanda, Vaticano, Família Real Britânica, banqueiros de toda a Europa, e naturalmente o papel das Américas na receptação dos escravos, daquilo que pode ser chamado de Inferno na Terra – a escravidão.
O livro é de leitura indispensável para todos que desejarem conhecer o Brasil de hoje, suas desigualdades, preconceitos, violência, e tantas outras manifestações sociais.
Além do que Escravidão é escrito em linguagem impecável, de leitura fácil e muito agradável, a despeito dos horrores de que trata.
Até tu, Vieira?!... Fico a recordar a informação de que outro grande autor, José de Alencar, senador do império, era contra a abolição da escravatura, pelo que consta. Temia a falência econômica do país! Enquanto isso, D. Pedro II era a favor.
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