Numa postagem anterior a esta, sob o título A chegada, (http://loucoporcachorros.blogspot.com/2019/03/a-chegada.html), tratei de assunto corriqueiro, prosaico, banal, que foi perder-me em um estacionamento de aeroporto, certo de que me haviam roubado o carro, quando da visita de meu amado irmão. A intenção era confirmar a ideia de que qualquer assunto serve para uma crônica. O que varia é a arte do escrevinhador.
Havia lido dois dias antes, no Último caderno de Lanzarote, de José Saramago Companhia das Letras, 2018), texto interessantíssimo do nosso Nobel, relatando a terrível experiência de esquecer a carteira numa cabine telefônica e perdê-la. Terrível porém corriqueira, prosaica, banal, e Saramago aproveita-se dela para escrever delicioso texto, repleto de humor fino, a erigir até mesmo uma estátua da Desolação.
Isso é saber escrever!
Vamos a um trecho do diário de 13 de fevereiro de 1998.
“Restava-me agora aguardar tranquilamente que acabasse de se organizar a caravana de autocarros que transportaria os passageiros a Corralejo, de onde o barco da carreira me devolveria a Lanzarote. A tranquilidade, porém, não durou muito, a alma caiu-me desamparada aos pés. Tinha deixado na cabina telefônica a carteira em que guardo os documentos de viagem, passaporte, bilhetes, cartões de companhias aéreas, cartões para chamadas, algum dinheiro... Não era a primeira vez que me acontecia uma destas nem iria ser com certeza a última. Extraio meticulosamente a carteira da mala de mão, coloco-a direitinha na prateleira da cabina, mesmo diante do nariz, não vá a má sorte fazer com que me esqueça, enfio o cartão na ranhura, marco o número, falo, ouço, termino a chamada, e depois (se não o deixei lá...) retiro o cartão e vou aos meus outros afazeres como se nada de anormal tivesse sucedido, abandonado os preciosos salvo-condutos à curiosidade ou à cobiça do primeiro que apareça. Levantei a alma do chão e corri à cabina como um desesperado, mas a carteira desaparecera. Suponho que quem reparasse em mim naquele momento pensaria que a administração do aeroporto de Fuerteventura decidira erigir uma estátua representando a Desolação, inspirada, talvez, no conhecido abatimento do passageiro frustrado que perdeu o voo no último minuto. Eu não perdera o voo, perdera a carteira, e entre perdê-lo a ele e perdê-la a ela, viesse o diabo e escolhesse.”
Peço encarecidamente ao leitor que não faça qualquer comparação entre as duas postagens: impossível alguém escrever frase mais linda que “a alma caiu-me desamparada aos pés”.
P.S.: A carteira foi encontrada pela mulher da limpeza e devolvida intacta ao ilustre proprietário.
Isto é saber escrever! Ressalte-se que este mesmo saber é acaso mistura de talento nato com boas camadas de prática e exercício. O comum dos mortais não chegará a ser um Saramago, mas pode alcançar, mercê de obstinada transpiração, uma escrita gentil e palatável. Já o louco está acima , quase à cintura do grande gajo...
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