A propósito do postanterior deste blog intitulado Carcaças, reproduzo trechos extraídos do livro Rembrandt, de Pierre Cabanne (Editorial Verbo, 1993), tradução de Maria João Leal de Faria. (Publicado em 9 out 2011 por Manuel SantAna).
“As cenas de matadouro, como motivo pictórico, podem nos parecer hoje inusitadas mas foram um tema recorrente na pintura flamenga e do norte da Europa. Representado a partir do século XVI por Aersten e Beuckelaer, é igualmente abordado por numerosos contemporâneos de Rembrandt. Os cadáveres de porcos ou de bois esquartejados e suspensos de traves, são frequentemente associados a uma personagem - em geral uma criança - e servem para transmitir a ideia de morte. Este tema fica assim mais ligado à cena de género do que propriamente à natureza-morta.
Rembrandt, talvez o maior pintor flamengo do séc. XVII, mostra-nos a peça como se de um retrato se tratasse: a visão a três quartos é aquela que mais favorece ou informações dá da personagem retratada. A carcaça encontra-se numa espécie de cave, talvez um açougue, num ambiente lúgubre e muito diferente dos talhos que estamos habituados a ver hoje em dia. Está suspensa pelos tornozelos e o externo foi serrado e mantido aberto por uma trave transversal almofadada nas extremidades. O traço é rápido e não se perde em pormenores e a luz, embora difusa, é suficiente para permitir a definição das características anatómicas do malogrado bovino. Existe ainda uma segunda fonte de luz a meia altura, do lado direito, proveniente da divisão contígua e de onde emerge o busto quase imperceptível de uma mulher. Rembrandt inclui quase sempre personagens nas suas obras, não subvertendo, nesse aspecto, a tradição das cenas de matadouro. Porém, entre a versão de 1640 e a de 1655 (aqui apresentada), o papel do personagem foi alterado. A mulher do açougueiro, limpando o sangue derramado sem dar atenção à carcaça do animal, mantém-se agora em segundo plano, contemplando o boi esfolado do vão da porta e fazendo com que o mesmo pareça monumental e como que projetado para diante.
Não será abusivo comparar este animal abatido - pendurado no madeiro e exibido de peito aberto - a uma crucificação. Se assim fosse, a visão alegórica transformaria um mero pedaço de carne no corpo torturado e mutilado de Cristo e o tema assumiria um carácter edificante aos olhos dos contemporâneos do pintor. No entanto, o boi esfolado tornar-se-á apenas "pitoresco" no início do século XVIII, e finalmente será considerado brutal e vulgar no final desse mesmo século. Teremos que esperar pelo século XIX para ver os pintores "copiarem" o mestre, prestando-lhe homenagem: Delacroix, Herbier, Daumier e ainda, mais próximos de nós, Soutine, Fautrier e Francis Bacon.”
Rembrandt, talvez o maior pintor flamengo do séc. XVII, mostra-nos a peça como se de um retrato se tratasse: a visão a três quartos é aquela que mais favorece ou informações dá da personagem retratada. A carcaça encontra-se numa espécie de cave, talvez um açougue, num ambiente lúgubre e muito diferente dos talhos que estamos habituados a ver hoje em dia. Está suspensa pelos tornozelos e o externo foi serrado e mantido aberto por uma trave transversal almofadada nas extremidades. O traço é rápido e não se perde em pormenores e a luz, embora difusa, é suficiente para permitir a definição das características anatómicas do malogrado bovino. Existe ainda uma segunda fonte de luz a meia altura, do lado direito, proveniente da divisão contígua e de onde emerge o busto quase imperceptível de uma mulher. Rembrandt inclui quase sempre personagens nas suas obras, não subvertendo, nesse aspecto, a tradição das cenas de matadouro. Porém, entre a versão de 1640 e a de 1655 (aqui apresentada), o papel do personagem foi alterado. A mulher do açougueiro, limpando o sangue derramado sem dar atenção à carcaça do animal, mantém-se agora em segundo plano, contemplando o boi esfolado do vão da porta e fazendo com que o mesmo pareça monumental e como que projetado para diante.
Não será abusivo comparar este animal abatido - pendurado no madeiro e exibido de peito aberto - a uma crucificação. Se assim fosse, a visão alegórica transformaria um mero pedaço de carne no corpo torturado e mutilado de Cristo e o tema assumiria um carácter edificante aos olhos dos contemporâneos do pintor. No entanto, o boi esfolado tornar-se-á apenas "pitoresco" no início do século XVIII, e finalmente será considerado brutal e vulgar no final desse mesmo século. Teremos que esperar pelo século XIX para ver os pintores "copiarem" o mestre, prestando-lhe homenagem: Delacroix, Herbier, Daumier e ainda, mais próximos de nós, Soutine, Fautrier e Francis Bacon.”
Pura e refinada erudição!
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