Um livro, qualquer livro, que precise de outro livro para explicá-lo, para que o leitor possa compreendê-lo, isso não me parece uma boa ideia. No entanto, há livros que vamos lendo e relendo uma vida inteira, sem que cheguemos à “leitura final”. Em tais circunstâncias, qualquer informação adicional será bem-vinda.
Estou a falar de Hamlet, de Shakespeare, e deO que apendi com Hamlet, de Leandro Karnal (LeYa, 2018).
Karnal, homem que dispensa apresentação, afirma que “nenhum outro livro marcou tanto a minha vida e provocou tantas reflexões ao longo dos anos”. Longe, mas muito longe, de igualar-me à capacidade intelectual e erudição de Karnal, em comum temos apenas que Hamlet também é o livro da minha vida. Daí o impulso para tomar conhecimento do que Karnal aprendeu com ele e que eu não aprendi.
As reflexões despertadas pelo livro em Karnal vão muito além do roteiro shakespeariano; há informações de toda ordem, históricas, filosóficas, detalhes da vida de Shakespeare (que teve um único filho homem, chamado Hamnet, e que morreu quando o pai escrevia a peça), da sociedade da época; até mesmo a Psicanálise, inexistente àquele tempo, presta sua contribuição através do Édipo. Destacam-se as observações sobre a melancolia e sobre a morte.
Porém, Hamlet é um livro que fala da vida!
O dilema central é conhecido de todos:
“Ser ou não ser, essa é que é a questão:
Será mais nobre suportar na mente
As flechadas da trágica fortuna,
Ou tomar armas contra um mar de escolhos
E, enfrentando-os, vencer? Morrer – dormir,
Nada mais; e dizer que pelo sono
Findam-se as dores, como os mil abalos
Inerentes à carne – é a conclusão
Que devemos buscar. Morrer – dormir;
Dormir, talvez sonhar – eis o problema.”
O príncipe Hamlet de Karnal é completamente humano, livre de idealizações românticas ou religiosas. Para Karnal, o dilema shakespeariano é o dilema de todos nós:
“Diante da mazelas do mundo, é melhor tentar corrigi-las ou seguir em frente sem esperança de que algo possa ser feito? A luta é a melhor estratégia ou devo me resignar com as coisas como elas são?”
Mais adiante Karnal complementa:
“Para mim, o monólogo é um projeto de vida e não de morte, um plano estratégico. ... Hamlet ora ignora, negocia, foge e adia decisões, ora ataca diretamente e mata. No embate de “ser ou não ser”, o príncipe “foi e não foi”.
... Quando agir e quando calar? Não há fórmula. Se houvesse, Hamlet estaria na prateleira de autoajuda e não nos clássicos da literatura mundial.”
Ao contrário dos livros de autoajuda, Hamlet nunca facilita a vida do leitor. São perguntas e mais perguntas, dúvidas e mais dúvidas sobre esse “mar de escolhos” que é a vida. Ainda mais: as decisões do protagonista levam a um fim trágico, à morte de quase todos aqueles que o cercam.
Portanto, cuidado com Hamlet! É o que aprendi com Leandro Karnal, em seu excelente livro. A vastíssima erudição do autor não cansa, não intoxica (como ocorre em algumas de suas crônicas semanais em O Estado de S. Paulo). Ao contrário, enriquece a leitura, amplia horizontes.
Resta-nos continuar lendo e relendo Hamlet! (E pensar que há muita gente que nunca ouviu falar na frase “Há algo de podre no reino da Dinamarca”.)
Nota n. 1, perfeitamente dispensável (os que conhecem este blogueiro sabem da admiração que ele nutre pelas belas e inteligentes capas): não é o caso do presente livro; poucas vezes vi uma capa tão feia, horrorosa mesmo.
Nota n. 2: Harold Bloom, especialista em Shakespeare, também publicou volume sobre Hamlet; o do Karnal é muito melhor.
Nota n. 2: Harold Bloom, especialista em Shakespeare, também publicou volume sobre Hamlet; o do Karnal é muito melhor.
Destaque, em primeiro lugar, para o elegante anacoluto da primeira frase. É o louco em alto estilo!
ResponderExcluirEm segundo, uma confirmação: lê-se o famoso monólogo pela centésima vez e o gosto é sempre arrebatador.
Precisei ir ao Google para conferir o tal anacoluto!
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