Em postagem recente (22 jan), trouxe a este blog fragmento do Diário de Carlos Drummond de Andrade, onde o poeta descreve a exumação e inumação dos ossos de sua mãe, em Itabira. O texto é comovente, tamanha a intimidade nele revelada. (http://loucoporcachorros.blogspot.com/2019/01/diario-do-poeta.html)
Encontro agora no Último Caderno de Lanzarote, de autoria de José Saramago, texto análogo, e penso que vale a pena comparar a escrita de ambos, Drummond e Saramago, dois dos maiores escritores da língua portuguesa.
Morreu Ilda Reis, com quem Saramago foi casado durante 26 anos e teve uma filha. Em 7 de janeiro de 1998 ele escreve em seu Caderno:
“Levámos a Ilda ao cemitério novo de Carnide. O céu estava encoberto, choveu durante o caminho. Instalado numa encosta de suave pendente, em plataformas amplas onde não há (por enquanto?) um único jazigo, o cemitério de Carnide tem ao meio, paralelas, duas correntezas de água que vêm descendo mansamente de socalco em socalco. Como o tempo. A Ilda nunca veio aqui, mas estou certo de que também teria pensado: “Olha, é como o tempo passando.” E talvez acrescentasse: “Este arquiteto tinha as ideias claras”. Digo eu agora: se as almas realmente existissem, o melhor uso que poderiam fazer da sua eternidade seria virem sentar-se em lugares assim, na margem dos rios, estes e os naturais. Caladas elas, calados eles, alguma vez a chuva caindo sobre as últimas flores. Nada mais.”
A escrita de Saramago é definitivamente poética, prosa poética. Descreve o cemitério e faz analogia com o tempo; daí chegar-se às almas (se existirem) e à eternidade é um pulo. Como no texto drummondiano, não há traços de tristeza ou sofrimento diante da morte em tais circunstâncias. Há sim uma certa ironia quando Saramago diz “A Ilda nunca veio aqui”, penso eu, e ironia é um dos traços marcantes do autor.
Ler Drummond e Saramago, o que mais podemos querer da vida?
A morte, repasse da vida, é assunto irresistível. No texto, Saramago quase lamenta não crer na eternidade da alma.
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