terça-feira, 22 de janeiro de 2019

Diário do Poeta





1954                                                                             Fevereiro 11

“Regressei ontem pela manhã de Itabira, aonde fora domingo passado, 7, para assistir à exumação dos ossos de Mamãe e à sua inumação junto aos ossos de Papai, em Belo Horizonte. 
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Sob o sol intenso, e na presença dos três filhos – Altivo, José e eu –, da nora Ita, e de alguns netos – Virgílio, Heraldo, Ofélia –, pouco a pouco a terra foi sendo removida a golpes de escavadeira, enxada, picareta e pá, com cuidado e atenção necessária para que não se extraviassem ou estragassem quaisquer despojos humanos. Alguns fragmentos de caixão foram aparecendo, e depois o contorno dele e sua tampa, não completamente, mas envolto em terra. A parte mais clara era a da madeira, enquanto outra, roxa, denunciava o forro externo de pano. O primeiro osso a aparecer foi um maxilar, que nos pareceu não pertencer ao corpo de Mamãe, pelo fato de estar fora do caixão, mas pouco depois Ofélia conseguiu articulá-lo com a caixa craniana, que estava lá dentro, e que surgiu pesada de terra, nela se distinguindo apenas as cavidades das órbitas e o círculo da garganta. Com um pedaço de madeira Altivo e depois eu o esvaziamos do conteúdo terroso. Esses e os demais ossos que iam sendo retirados eram depositados sobre uma toalha que pertencera a Mamãe e que Ita trouxera. A empregada de Ita, Carola, apareceu com água e cachaça, esta última destinada aos coveiros.
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Impressão: o que estava ali, roído de vermes e sujo de terra, pouco tinha a ver com minha Mãe, separado já de seu espírito, que desaparecera. Cumpríamos um dever filial e piedoso, mas não havia motivo para sofrimento; tudo estava acabado e perfeito. E se o ato assumia alguma significação, antes de alegria, pela união final dos dois corpos, ou dos restos deles, a esposa indo encontrar-se com o esposo depois da involuntária separação. Era quase festivo e triunfante esse encontro dos ossos, vencendo o tempo e a morte.”

            O texto acima, não se trata de ficção, não faz parte de nenhum conto ou crônica; ao contrário, é a descrição minuciosa de fatos reais, registrados por ninguém menos que Carlos Drummond de Andrade!
            O fragmento pertence ao volume Uma forma de saudade – Páginas de diário, organização de Pedro Augusto Graña Drummond (Companhia das Letras, 2017). Acompanham o texto imagens raras, fotografias dos antepassados, fac-símiles e poemas de Drummond. Capa e contracapa repletas de fotografias  (parcialmente ocultas pela sobrecapa, na foto acima), cercadas de discretas linhas feitas por caneta esferográfica azul, a data de cada uma escrita à mão, com a mesma caneta. Lindíssimas, autoria de Raul Loureiro.
            Não posso negar minha emoção, eu que nutro profunda admiração pelo poeta, ao ler palavras de tamanha intimidade, registradas em um diário e nunca publicadas em vida. É preciso lê-las com muito respeito.


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